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África: por que tantos golpes e instabilidade?

Danilo Rocha Lima , da Headline | Paris, França

Continente registrou quase metade de todos os golpes no mundo. Números e analistas mostram se a "epidemia de golpe" na África é maior do que nos anos anteriores e se o "efeito de contágio" nos vizinhos deve ser temido

30 de set. de 2312 min de leitura
30 de set. de 2312 min de leitura

Uma apresentadora de um grande canal de notícias brasileiro explicou em 30 segundos, num programa matutino ao final do mês de agosto, que um golpe de Estado ocorreu no Gabão. Ao final da nota, uma colega reagiu: "Mais um. Na África, troca-se de poder como se troca de roupa". E, diante do simplismo, passou-se para outro assunto do dia.

Mas onde fica o Gabão e quais as causas desse (mais um) golpe? Por que tantas tomadas de poder em tão pouco tempo nos últimos anos? Existe realmente o "contágio de golpes" em países vizinhos? E quais lições importam para o Brasil, acostumado a olhar para os "modelos" europeus e norte-americanos? Esse especial tenta fornecer elementos para reflexão que podem ajudar a responder essas perguntas.

Frequência de golpes

O continente africano lidera o ranking de golpes e tentativas de golpe no mundo. Entre 1950 e 2023, 221 golpes e tentativas de golpe foram realizadas somente na África. Isso representa quase metade (44%) de todos os eventos deste tipo no mundo. O Sudão é o país que lidera essa estatítica, com 17 no total, desde 1950. Logo em seguida, Burundi, Gana e Serra Leoa compõem a pódio dos campeões no século 20. Os dados são contabilizados com frequência pelo Instituto de Pesquisa Social Cline Center, da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, nos Estados Unidos.

Essa conta não leva em consideração a tentativa de golpe de Estado realizada na última quarta, 27, no Burkina Faso. A junta militar, que tomou o poder à força em setembro do ano passado, diz que prendeu oficiais e cúmplices acusados de perpetrar mais um golpe. Apoiadores do líder militar,Ibrahim Traoré foram às ruas da capital, Uagadugu, contra mais essa tentativa. Somente entre 2020 e 2021, o Burkina Faso sofreu dois golpes, no espaço de oito meses.

O último golpe que sacudiu o continente foi realizado ao final do mês de agosto, no Gabão, quando militares tiraram do poder o presidente Ali Bongo, que ocupava o posto há 14 anos e tinha proclamado vitória numa eleição contestada, para um terceiro mandato. Antes dele, a família Bongo dirigiu o país por 41 anos.

Sequência temporal dos golpes na África entre 1950 e julho de 2023. Crédito: Statista Research


Em comparação com outros continentes, a América Latina, em segundo lugar no ranking mundial, contou 146 golpes e tentativas no mesmo período, seguida da Ásia, com 49, em terceiro lugar.

Sequência de golpes sucedidos (amarelo) e fracassados na África, entre 1950 e 2022. Crédito: Cline Center University of Illinois


Depois de uma relativa calmaria observada entre os anos de 2013 e 2020, nada menos que 14 tentativas de golpe de Estados foram registradas no continente desde 2021. Esse número já contabiliza os mais recentes, ocorridos no Chade, no Burkina Fasso (2020 e 2021), no Sudão e no Mali. Essas nações têm em comum o fato de estarem localizados no Sahel, região de dez países que se estende por mais de 5400 Km de leste a oeste da África, entre o deserto do Saara e as savanas do Sudão.

Diante da recrudescência dos golpes, o secretário-geral da ONU, António Guterres, já chegou a falar de uma "epidemia de golpes" no mundo, acelerada pelos eventos na África.

Entretanto, segundo pesquisadores que acompanham de perto o assunto por anos, seria precipitado achar que há uma causa comum para todos esses golpes no continente africano e que o efeito de contágio é a sua consequência mais natural. Números dos pesquisadores Jonathan Powell e Clayton Thyne demonstram que as décadas de 70, 80 e 90 do século passado registraram em média 40 golpes de Estados. Até o ano passado, a década atual registrava oito eventos. Portanto, a teoria da "epidemia de golpes" não pode ser sustentada.

"Essa onda de golpes atual é muito específica para o Sahel. Na verdade, não é algo que está acontecendo em toda a África francófona. É realmente muito específico para Mali, Burkina Faso e Níger, por exemplo. Nos outros países, não vemos manifestações antifrancesas. Esses levantes realmente falam sobre a crise de segurança nesses países", insiste o cientista político Rahmane Idrissa.

Entretanto, as múltiplas razões sócio-econômicas, a interferência estrangeira, os resquícios do colonialismo e o contexto atual indicam os elementos que levaram a essa explosão de golpes nos últimos três anos.

"Há golpes de Estado ligados à situação de segurança na África Ocidental e no Sahel. Um deles, em particular, é o caso do Mali, do Burkina Faso e agora do Níger. Esses são três países que vêm sofrendo uma deterioração da situação de segurança há muitos anos, e há mais de uma década, no caso do Mali, com grupos terroristas armados", aponta Gilles Yabi, fundador do think tank senegalês Wathi.

Além da questão da segurança, o fator político é também uma das causas principais da instabilidade. "Por exemplo, na República da Guiné – onde não há nenhum grupo terrorista armado e nenhuma crise de segurança –, houve um chefe de Estado, Alpha Condé, que, após dois mandatos, decidiu cumprir um terceiro mandato que não estava previsto na Constituição. Ele mudou a Constituição, aprovou-a por meio de um referendo altamente contestado e, assim, após sua eleição para esse terceiro mandato e em meio à contestação política, soldados próximos ao poder agiram para derrubá-lo", resume Yabi.

Pessoas celebram nas ruas a prisão do presidente da Guiné, Alpha Conde, em 5 de setembro de 2021. Foto: Cellou Binani/AFP
Pessoas celebram nas ruas a prisão do presidente da Guiné, Alpha Condé, em 5 de setembro de 2021. Foto: Cellou Binani/AFP

Para Djenabou Cissé, pesquisadora e especialista do Sahel, a sequência de golpes na região "é o resultado de um agregado de fenômenos: há a deterioração da segurança, há a crescente desconexão entre as elites políticas e o povo. Há, é claro, a crescente influência de outras potências, como a Rússia, que está capitalizando tudo isso e explorando-o a seu favor, especialmente por meio de sua estratégia de informação, diz.

"E também há uma crítica crescente à política externa francesa na região, já que a França é a antiga potência colonial, a potência que realizou a maioria das operações militares no continente africano, a potência que esteve na vanguarda da luta contra o terrorismo no Sahel e que também é acusada de não ter realmente colocado um plano de ação para a região", afirma Cissé, membro da Fundação para a Pesquisa Estratégica, com sede na França.

Cissé aponta que a crescente ameaça terrorista inevitavelmente levou a um alto nível de insegurança, que causa o crescente clamor público em favor dos militares, que estão na linha de frente na luta contra esses grupos terroristas. Mas essas forças militares estão mal equipadas para lidar com a ameaça terrorista e sofrem grandes perdas de vidas e terrenos.

Portanto, a insatisfação com as elites políticas e os governantes desses países, associada à deterioração da situação de segurança tem fortalecido a imagem dos militares para que "façam alguma coisa" em nome do povo. Eles são os primeiros a serem chamados para tomar o poder e instaurar ordem diante do caos político e da ameaça terrorista.

"Os Estados liderados por civis não devolveram às populações os elementos de liberdade, justiça e democracia que esses Estados deveriam garantir. Por isso há uma certa raiva que se dispersou muito rapidamente. As populações africanas acreditavam, desde a queda do Muro de Berlim, que uma onda de revolução no continente, no início dos anos 90, instaurasse o princípio democrático eleitoral liberal que lhes permitisse sair do colonialismo e da exploração. Mas, acima de tudo, da pobreza. Não foi o que aconteceu", lamenta Farida Nabourema, diretora da Liga Civil Togolesa, que promove a democracia no Togo.

Nabourema também lembra que as guerras civis na Líbia, iniciadas depois da queda do ditador Muhamar Kadhafi, em 2011, seguidas pela intervenção francesa, são pouco levadas em conta para também explicar a instabilidade política na região do Sahel.

"A França tinha uma agenda geopolítica diferente dos líderes africanos. Ela não se importou com a vida dos cidadãos africanos e decidiu intervir sem pensar nas consequências. Hoje, todos esses países estão pagando o preço. Porque você tem um poder militar que foi totalmente destruído, armas pesadas e armas pequenas que também foram dispersas na região caíram nas mãos das pessoas erradas. E, por fim, as pessoas estão sendo levadas a acreditar que a intervenção militar da França no Sahel para combater esses jihadistas é uma ação de caridade", explica Nabourema.

"A intervenção da França e seus aliados na Líbia, tirou a estabilidade dessas nações, com milhões de pessoas deslocadas, que perderam sua única fonte de renda, suas aldeias, suas comunidades. Elas então se voltam contra as elites políticas e a França", analisa a militante pelos Direitos Humanos. "E quando essas pessoas querem ir embora novamente, os europeus lhes dizem 'não, não queremos vocês, fiquem lá e sofram'. Por isso, o povo da África não tem escolha a não ser querer mudanças a qualquer preço", pondera Farida Nabourema.

Demografia

Segundo a ONU, o Sahel tem 64,5% da sua população de 105 milhões de pessoas com menos de 25 anos. Além disso, a ONG Ação Contra a Fome estima que cerca de 40% dessas pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. O terreno torna-se então fértil para o descontentamento com a classe política e para o recrutamento de grupos terroristas.

"Há um problema de fracasso do Estado, principalmente de um colapso no contrato social, já que vários desses Estados estão passando por grandes dificuldades para fornecer às suas populações serviços sociais básicos, ou seja, proteção e direitos econômicos básicos", indica a pesquisadora Djenabou Cissé, que toma o exemplo do Mali, onde grupos rebeldes regionais exercem uma forte oposição contra o poder concentrado na capital, Bamaco.

Um eleitor deposita o seu voto na abertura das urnas no referendo do Mali em Bamako, a 18 de junho de 2023. Os malineses vão às urnas para votar num referendo para ver se serão feitas alterações à constituição. Foto: Ousmane Makaveli/AFP
Um eleitor deposita o seu voto na abertura das urnas no referendo do Mali em Bamaco, em 18 de junho de 2023. Os malineses vão às urnas para votar num referendo para ver se serão feitas alterações à Constituição. Foto: Ousmane Makaveli/AFP

"Cria-se então um fenômeno acelerado pela infiltração de grupos armados e o problema da identidade nacional. Muitas vezes, um Estado central favorece determinados grupos étnicos e marginaliza outros. Esse é mais um motivo para o rompimento entre setores da população e seus governantes e, portanto, para a radicalização e a instabilidade desses setores da população", afirma Cissé.

Para o cientista político nigerino Rahmane Idrissa, o problema fundamental das tensões entre grupos sociais e étnicos reside na forma como o governo é exercido nesses países."Quando você controla o Estado, você tem esse poder de punir aqueles que não estão com você e de segurar aqueles que estão com você. Não se trata de uma revolta de jovens. Até mesmo as pessoas mais velhas não gostavam desse governo por causa disso", relembra Idrissa que analisa o golpe de Estado do Níger, ocorrido em julho passado, quando a guarda presidencial deteve o presidente Mohamed Bazoum e uma junta militar tomou o poder.

"Salvar o Estado dele mesmo"

Mas já que a forma viciada de exercer o governo e a sucessão de golpes impedem que o conceito de nação se instaure em grande parte dos países africanos, como fazer para que o Estado provenha as necessidades básicas, proteja os cidadãos das instabilidades políticas frequentes e garanta a alternância de poder?

O professor de segurança internacional da Universidade de Nova Jersey, Juste Codjo cunha o termo "consencracia" para responder a essas questões. Segundo ele, o modelo se articularia em torno de uma agenda de consenso nacional, que definiria as prioridades em relação às políticas públicas do país a serem seguidas por todas as lideranças. Em seguida, a emergência de partidos políticos, a instauração de um sistema partidário e de um regime parlamentar, seguidos da instalação de um órgão supremo para regular a vida política e administrativa garantiriam o exercício desse modelo.

Entretanto, para Gilles Yabi, a "consencracia" não garantiria as virtudes do exercício do poder, já que ela não se atacaria a um problema com raízes profundas nas sociedades africanas: a corrupção. Segundo ele, é preciso levar em conta as particularidades sócio-econômicas de cada país e evitar simplesmente de replicar modelos propostos pelos ocidentais.

"Podemos reformar as instituições sem necessariamente revolucioná-las completamente. Elas podem ser reformadas para criar gradualmente as condições para uma melhor governança que beneficie as pessoas. Vamos pensar de forma bem concreta: o desvio de verbas e a corrupção não são problemas ligados à democracia, mas sim a todos os modelos. Podemos ter ditaduras corruptas, assim como democracias corruptas", lembra Yabi.

Segundo ele, a redução da instabilidade no continente africano passa pelo trabalho voltado para criar as condições de redução significativa da corrupção. Yabi prega que seria necessária uma abordagem mais cirúrgica e objetiva, baseada na compreensão de como os países africanos realmente funcionam. "Vamos trabalhar para criar as condições de melhoria na forma como nossas administrações trabalham e reduzir a politização de nossas administrações", aponta Yabi.

Os golpes de Estado que vemos hoje são assim uma consequência do fracasso dos chamados sistemas democráticos instaurados na África, após a onda de independências dos anos 60 do século passado, segundo a militante por direitos humanos Farida Nabourema. "Antes de mais nada, temos que aceitar que o povo africano está acordando hoje; e temos que reconhecer que o povo africano continuará lutando por sua emancipação", diz. 

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