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Viva São Gonçalo! Um dia de roda para o santo no sertão

Dança que chegou no Brasil no século XVIII e que já foi proibida pela nobreza resiste em meio a ritos que misturam o profano e o sagrado

Danilo Rocha Lima, da Headline | Juazeiro
#DANÇA17 de fev. de 239 min de leitura
Música e reza na Roda de São Gonçalo em Juazeiro, interior da Bahia. Fotos: Danilo Rocha Lima / Headline
Danilo Rocha Lima, da Headline | Juazeiro17 de fev. de 239 min de leitura

Manhã de domingo e não muito longe da margem direita do rio São Francisco, o som do canto de galos e pardais se mistura ao convite de uma viola frenética. Ela é acompanhada de pandeiros que dão o ritmo a passos rápidos e cadenciados, sob o sol escaldante do sertão. Passos esses que parecem se acelerar porque o asfalto esquenta muito. Ainda não chegamos às 9h da manhã e os dançantes já participam de uma maratona de uma beleza simples e não menos impressionante. Haja fôlego e pernas para entrar na Roda de São Gonçalo.

A roda é uma mistura de dança e reza, realizada sempre quando alguém alcança uma graça por promessa feita ao santo. Em meio ao calor desumano que se abate sobre Juazeiro, no interior da Bahia, os participantes resistem e dançam, como se perpetuar cada gesto daquela roda fizesse parte de um movimento de resistência maior, de uma manifestação cultural brasileira que se esvai pelo tempo e por gerações. Mas ela persiste.

A primeira Roda de São Gonçalo que se tem registro realizada no Brasil aconteceu justamente na Bahia, em Salvador, em 1718, na igreja que levava o nome do santo. Religiosos, escravos, mulheres e o nobre Marquês de Angeja (descendente dos reis de Portugal) animaram a celebração. A festa, 305 anos depois, é organizada sem a presença da nobreza, agora em Juazeiro e em várias partes do país. É o povo quem toca e dança. É mais uma festa brasileira que mistura o sagrado e o profano. Mais uma mostra de quem somos e por quem somos feitos.

Roda de Sao Gonçalo 06
Qualquer pessoa pode dançar a roda. Basta seguir as ordens do mestre e contramestres.

Descendentes de escravos, fiéis, pagãos e ateus se misturam diante de dois altares montados para o santo. O ritmo é alegre e encanta quem ousa parar pra admirar uma dança cuja prática é cada vez mais rara. As anfitriãs são as irmãs Maria Madalena Jesus do Nascimento, 55 anos, e Domingas Jesus do Nascimento, 60 anos. Cada uma com seu altar e sua promessa a pagar para o santo.

Enquanto a viola é dedilhada, convidados, parentes, vizinhos e curiosos se misturam, liderados pelos puxadores, conhecidos como mestre e contramestre. São eles os mais experientes, os verdadeiros guardiões de uma tradição que se transmite oralmente.

Poucos são os escritos sobre a dança e, por isso, pessoas como Seu Valdemir, mestre da roda do dia são vistos como monumentos vivos, oráculos dessa história. "Tem 32 anos que eu danço. Meu pai sempre tirou festa de São Gonçalo com meus tios. E aí, no decorrer do tempo, a gente foi pegando as crianças, os jovens e estamos aqui. Somos eu, meus filhos, meus irmãos, primos. É isso aqui que você vê", diz seu Valdemir, dividido entre a timidez, o fervor religioso e o orgulho de falar da festa.

"A gente recebe um trocado que o pessoal dá pra gente. Mas, muitos também não podem pagar, e a gente faz do mesmo jeito. O importante é que a pessoa pague a sua promessa, a sua obrigação devida a São Gonçalo, em nome de Deus".

"Enquanto Deus me der vida e saúde, estamos aqui", assegura o mestre, que já tem danças previstas todos os fins de semana até o início da quaresma e logo depois da Páscoa.

A roda liderada por seu Valdemir é composta por dois grupos. A dança é frenética e ritmada. Lembra muito a mistura de quadrilha junina com ciranda e outras danças folclóricas como a congada. Os pé se arrastam no asfalto, mulheres, jovens e crianças se entrelaçam e dão voltas entre si e a concentração dos participantes é máxima, atentos às ordens dos puxadores.

Diante dos altares repletos de velas, basta pegar seu par e seguir os outros dançantes. Domingas e Maria Madalena acompanham e incentivam outros a pagar promessas, como uma vizinha que acompanha uma roda sentada, com o santo na cabeça.

Essas rodas são um conjunto de 12 passos (ou trocados) realizados por todos os participantes. Uma roda inteira, portanto, é um conjunto de louvores, preces e cantos com duração entre 40 minutos até três horas, sem interrupção. Na verdade, a roda se torna uma grande brincadeira.

Vizinhos e curiosos se espremem na pouca sombra da rua do Cajueiro, onde moram Madalena e Domingas, para admirar os passos e por muitas vezes seguí-los. Para pagar a promessa o fiel deve oferecer até 24 rodas a São Gonçalo. E foi exatamente esse número total escolhido pelas irmãs Nascimento, dividido entre elas. “Pra muitas pessoas, isso faz parte da nossa cultura. Pra mim, é uma mistura: é cultura e fé, mesmo. Quem tem fé em São Gonçalo, faz a promessa, a alcança e paga com dança”, festeja Maria Madalena.  

O santo e a festa

A devoção a São Gonçalo chegou ao Brasil ainda nos primeiros anos depois da chegada dos portugueses, com padres jesuítas. O pesquisador francês Gentil de La Barbinais foi um dos primeiros a descrever a dança de São Gonçalo, na Bahia, nos idos do século XVIII, segundo o professor Carlos Alberto Santos, da Universidade do Estado da Bahia.

Pequeno altar montado na rua para que os fiéis celebrem o santo. Foto: Danilo Rocha Lima / Headline
Pequeno altar montado na rua para que os fiéis celebrem o santo.

A estátua de São Gonçalo leva uma viola e justifica a fama de santo festeiro e casamenteiro — além de ser o padroeiro dos violeiros. Gonçalo, de família nobre, nasceu em Arriconha, em Portugal no século XII (1187). Depois de ordenado sacerdote, viveu como eremita após uma viagem a Jerusalém. Considerado beato pela Igreja Católica, morreu no ano de 1262 em Amarante, perto da cidade do Porto, onde se construiu um templo e um convento, conhecidos e visitados até hoje.

Mas a fama de Gonçalo vai além das atividades eclesiásticas e invade o profano. Segundo a tradição dos fiéis, o sacerdote era farrista e participava de bailes e festivais pagãos. O jovem religioso se vestia de mulher e, com instrumentos musicais improvisados, dançava com outras mulheres para evitar que elas esperassem por marinheiros da região e caíssem na prostituição. Acreditava-se também que essas mulheres se convertiam e se casariam em seguida. Por isso, a fama de Gonçalo para os católicos, como Santo Antônio, é de ser casamenteiro.

A dança em homenagem ao santo chegou a ser proibida por condes e marqueses no Brasil Colônia. Mas logo foi retomada, como símbolo de resistência e fé por negros e negras escravizados e quilombolas nas cidades do interior do país. Hoje, a Roda de São Gonçalo é festejada em pelo menos dez estados. Apesar da data de morte do santo ser um 10 de janeiro, não há data fixa pra fazer festa em seu nome.

Por isso, num domingo de fevereiro festejou-se o santo em Juazeiro.  "Desde pequena eu participo de festa pra São Gonçalo. E eu sempre dancei. Com 5 anos de idade, já comecei a dançar porque a gente tinha uns amigos que faziam 72 rodas. Aí, a gente dançava três dias seguidos", lembra Domingas, que anuncia ainda a chegada de mais convidados.

"Eu consegui uma graça e não a quero só pra mim. Eu tenho que dividir com todo mundo. E aí, a gente chama os amigos pra dividir com eles a nossa felicidade", afirma com os olhos cheios de lágrimas.

Abra as portas para o santo e para o povo

Entremeados de referências às plantas, aos animais, ao cheiro da terra e a outros elementos da natureza, os cantos religiosos aproximam os sertanejos do seu dia a dia. Todos cantam, dançam e comem juntos. Segundo a tradição, quem paga promessa para o santo também abre as portas da sua casa para quem quiser entrar.

Entre uma roda e outra, um café, um pão e biscoitos ajudam os convidados das irmãs Nascimento a manter a energia. A casa é tomada pelo burburinho dos passantes e o barulho da viola na calçada é abafado pela conversa de dançantes e curiosos na varanda e na sala.

Comida e o som da viola ajudam na animação dos que dançam e dos que assistem. Foto: Danilo Rocha Lima / Headline
Comida e o som do violão ajudam na animação dos que dançam e dos que assistem.

Impossível não se deixar levar pelo cheiro vindo da cozinha. A festa religiosa, na verdade, é mais um pretexto para o sertanejo reunir sua gente, soltar fogos, entoar cantos, danças, simpatias e música. Arroz, porco, boi, frango, bode, feijão com caldo, feijão verde, batata... O cardápio é farto e previsto para que nada menos que 800 pessoas aguentem o ritmo e o calor.

Das tradições e gerações futuras

Historiadores e estudiosos da festa dizem que uma das principais lendas referentes à Roda de São Gonçalo é que pessoas recém enlutadas não podem dançar a roda. Dona Domingas, que perdeu a mãe há muitos anos, já passou desse tempo e fez do luto ao longo dos anos uma inspiração.

"A minha mãe dançava muito. Acho que ela estava percebendo que ia morrer e me chamou, sentou ali naquele banquinho na frente da casa e disse pra mim: 'minha filha, depois da minha morte, nunca deixe de dançar, eu vou olhar por você'. Então, hoje, fazemos festa na casa dela", relembra a devota, rodeada de crianças e jovens, que já ensaiam os primeiros passos para dar seguimento à tradição. A dança de São Gonçalo parece ter futuro, ainda que cambaleante.

Domingas e Maria Madalena festejam e dançam, carregando o santo e celebrando ao final de um dia de maratona, o pagamento da promessa. Dívida paga.

Aliás, reza mais uma lenda que devotos que prometeram e não pagam as promessas a São Gonçalo com música e dança ficarão vagando e penando, pedindo a almas caridosas para dançarem a roda. Menos mal para as irmãs Nascimento. Finalmente, com a promessa paga, as bençãos do santo e muita dança no pé, elas podem dormir tranquilas.

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