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"Urubus" leva cultura do pixo ao cinema

Gaía Passarelli, da Headline | São Paulo

Premiado pelo júri e público da 45ª Mostra de Cinema de São Paulo, longa ficou mais de dez anos em produção e chega agora aos cinemas brasileiros

27 de mai. de 236 min de leitura
27 de mai. de 236 min de leitura

Aconteceu tanta coisa no Brasil nos últimos vinte anos que pouca gente lembra, mas ali por 2008 um assunto quente nas páginas dos jornais foram as atividades de pichadores que, impulsionados por ocupações promovidas no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, em galerias de arte e, pouco depois, na Bienal de Arte, foram alvo tanto de investigações e prisões quanto de discussões sobre os limites do que se convencionou chamar "arte de rua". 

Foi por essa época que o diretor de filmes Claudio Borrelli, querendo contar uma história sobre o que levava grupos de jovens a escalar arranha-céus para deixar suas marcas visíveis, chegou até Cripta Djan, um líder entre os grupos de pixo de São Paulo, por indicação da produção do documentário "Pixo" (João Wainer, 2014).

O X da questão

O X no substantivo pixo é proposital entre os pichadores, uma marcação de identidade, explica Djan: "A pichação tem uma ideia de subverter coisas, inclusive a língua portuguesa."

"No pixo o X é intencional, serve para criar identidade."
Djan Ivson, o Cripta Djan

O encontro entre Djan e Borrelli rendeu uma produção colaborativa que fluiu por mais de uma década, recebeu prêmio de júri e público na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e que chega agora às salas de cinema brasileiras em 1º de junho: o longa-metragem "Urubus".

"Urubu é um bicho pelo qual a sociedade tem ojeriza. Como tem ojeriza ao pichador. E o urubu vê a cidade de cima. Como pichadores, que veem a cidade de cima dos prédios". A explicação de Borreli ajuda a entender a escolha de batismo.

Imagem de "Urubus", de Claudio Borrelli.
Imagem de "Urubus", de Claudio Borrelli. Foto: Divulgação/O2 Play

A história da colaboração começa com uma sinopse escrita por Cripta Djan, alcunha de Djan Ivson, morador de Barueri, Zona Oeste da região metropolitana de São Paulo. Com pouco menos de 100 páginas, Djan escreveu sobre escaladas e riscos, sobre vida e morte nas periferias, sempre com base em suas experiências como pichador. Essa sinopse foi então trabalhada a oito mãos por Djan, a cineasta Vera Egito, a roterista Mercedes Gameiro, e Borrelli.

"Entre 2008, quando começamos a escrever, e 2018, quando terminamos de filmar, a maioria do tempo foi de criação e amadurecimento desse roteiro feito por quatro roteiristas. Então teve muita troca", conta Djan. "A Bienal, por exemplo, entrou depois, não tinha no começo da história. O roteiro inicial era muito focado na minha vivência do rolê do pixo e de circular pelo centro, as escaladas nas ruas. Foi um desafio de juntar dois períodos distintos da minha trajetória, com o começo mais underground no começo dos anos 2000 e a época das invasões em que a gente estava mais politizado e com referências mais acadêmicas".

Se para Djan a escolha do tema veio do que ele vivia rotineiramente, para Borrelli veio do que observava. "Filmei muito no Centro na vida, e as locações de centros de cidades sempre podem ser de qualquer grande cidade do mundo. Uma imagem do Teatro Municipal, por exemplo, pode ter uma praticamente igual em Madri, Barcelona ou Buenos Aires. Mas não em São Paulo. O pixo em São Paulo sempre foi uma questão muito visível".

Imagem de "Urubus", de Claudio Borrelli.
Gustavo Garcez em cena de "Urubus". Foto: Divulgação/O2Play.

Ficcional e real 

Trinchas, o protagonista vivido por Gustavo Garcez em sua primeira experiência como ator, tem muito de Djan. "O filme é baseado em fatos e é bem fiel à realidade", conta Djan. "As ações nas ruas, a dinâmica do pixo na cidade, esse trânsito periferia e centro bem presente para o pichador, tudo eu vivi ou presenciei de alguma forma". Parceiro criativo vindo de outra esfera social, Borrelli conta que buscou desde o início do projeto uma visual documental: "Eu quis fazer um filme sem opinião julgadora, sem glamourizar ou vilanizar os pichadores. Eu quis retratar esse mundo como ele é, com a maior verdade possível".

Outros eventos retratados, como a invasão da Bienal de 2008, que Djan ajudou a organizar, também têm esse viés realista. "Foi um divisor de águas no mundo do pixo", Djan relembra. "Principalmente como representação dos pichadores no campo das artes. Foi quando se abriu essa discussão de fato, e passamos a ser convidados para participar de mostras internacionais, a estar em exposições em museus e galerias. A invasão é algo que repercute até hoje".

Imagem de "Urubus", de Claudio Borrelli.
"Em 2008, na Bienal do Brasil, tudo branco, os pichadores chegaram com aquele preto todo por cima", diz Borrelli, que aprendeu a ver beleza no pixo. Imagem: Divulgação/O2Play

Independentes

"O filme foi feito em brechas de tempo", explica o diretor. "Urubus" foi feito de forma independente, sem verbas de editais, de lei de incentivo ou patrocínios, inclusive porque a temática central não ajuda. O que é um dos motivos, junto com longa elaboração de roteiro, de ter ficado uma década em produção. Uma vez pronto, em 2018, foi hora de começar a tentar veicular — o que também não foi fácil.

Imagem de "Urubus", de Claudio Borreli
Bella Camero como a estudante de arte Valéria. Foto: Divulgação/O2Play.

"O filme ficou pronto e foi lançado no Brussel Independent Film Festival, em fevereiro de 2020, antes da pandemia." Mas a falta de experiência com o mundo dos festivais de cinema foi uma questão maior do que as dificuldades do período em que tudo esteve fechado.

"É mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um filme entrar em Sundance por indicação de e-mail", ri Borrelli. "Hoje eu sei que deveria ter trabalhado o filme de forma. Ninguém apresentou o filme para ninguém, ele foi inscrito pela internet, com link do Vimeo, não teve sales agent, nem nada. Se tivesse, talvez ele teria essa capacidade de ser bem trabalhado em festivais, nas mãos certas."

O longa-metragem recebeu dois prêmios na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2022. "A Mostra era uma coisa que eu queria muito, pessoalmente mesmo. A experiência mais legal do filme foi a sessão especial no vão livre do MASP. Foi histórico, no museu de arte mais importante de São Paulo, mostrando uma arte que é da cidade", conta Borrelli. "Eu ganhei um cartaz enorme deles, com oito metros, com as assinaturas de todos os grupos de pixo de São Paulo. Para mim, isso é mais valioso que qualquer Palma de Ouro".

"Urubus" estreia em circuito nacional na quinta-feira, 1º de junho. 

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