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Ultradireita terá até ‘poder de veto’ na Constituinte do Chile

Partido Republicano, de José Antonio Kast, se impôs nas urnas e agora sequer precisa de coalizão para garantir veto na elaboração da Carta Magna; base aliada de Gabriel Boric será minoritária e presidente clama por diálogo

Giro Latino
#CHILE8 de mai. de 236 min de leitura
José Antonio Kast em entrevista ao programa El Sillón de Pedro Presidencial, da Televisión Nacional de Chile, em 3 de agosto de 2017. Foto: Divulgação / TVN
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“Não cometam o mesmo erro que nós”, pediu o presidente Gabriel Boric na noite de domingo (7), em uma fala que foi ao mesmo tempo um alerta e um reconhecimento da derrota de seu campo político nas eleições que formaram o novo Conselho Constitucional do Chile. Em um pleito marcado pela desilusão com a caminhada para reescrever a Carta Magna nos últimos anos, quem levou a melhor foi a extrema-direita encabeçada pelo Partido Republicano de José Antonio Kast – o ex-presidenciável derrotado pelo próprio Boric em 2021 –, que saiu das urnas com 22 dos 50 assentos em jogo no órgão constituinte. Na prática, como é necessária uma maioria qualificada para aprovar as matérias, os republicanos terão “poder de veto” – nada poderá ser aprovado sem sua anuência, o que explica o apelo de Boric por uma abertura ao diálogo.

O cenário geral é ainda mais sombrio para a esquerda, que no passado chegou a ditar praticamente sozinha os rumos da reescrita da Constituição chilena. Além do impressionante domínio republicano, que obteve maioria em um pleito marcado por grandes coalizões, a direita tradicional conquistou outros 11 lugares, elevando o domínio conservador a dois terços do novo Conselho. Esse grupo, autointitulado “Chile Seguro” (um nome oportunista em um contexto de grande preocupação com a crise de segurança pública no país), reúne partidos como a União Democrática Independente (UDI) e a Renovação Nacional (RN), antiga sigla do ex-presidente Sebastián Piñera (2010-2014 e 2018-2022).

A chamada “Unidade para o Chile”, agrupamento das siglas da base aliada de Boric, inclusive os socialistas e os comunistas, levou as 17 vagas restantes no domingo, em um órgão que no fim das contas acabará tendo 51 membros, um a mais do que o previsto originalmente: além dos 50 assentos abertos às listas partidárias, havia a chance de eleição de representantes indígenas que superassem uma cláusula de barreira, e um deles – o mapuche Alihuén Antileo – conseguiu chegar lá. O órgão também terá paridade de gênero, o que causou revolta em setores direitistas que viram alguns de seus homens favoritos ficarem de fora apesar de votações expressivas, cedendo passagem a correligionárias menos votadas que pegaram vagas na chamada “correção de paridade”.

Na ponta dos derrotados absolutos, sem atingir os votos necessários para eleger qualquer nome, ficou a coalizão centrista “Tudo pelo Chile”, confirmando o definhar histórico de alguns dos partidos mais importantes na redemocratização chilena nos anos 1990, caso da democracia-cristã (DC) e do Partido pela Democracia (PPD). Com a menor votação geral e também sem eleitos apareceu o “Partido de la Gente”, sigla de direita que confiou em seu potencial, concorreu sozinha, e acabou engolida pela onda republicana.

Conselho durará cinco meses

O Conselho Constitucional eleito neste domingo terá um prazo de cinco meses, a contar da instalação em 7/6, para apresentar sua versão do novo texto. Depois, haverá um intervalo de mais 40 dias até o plebiscito de 17/12, em que os chilenos outra vez devem decidir se aceitam a Carta Magna proposta. Vale lembrar que, agora, o Conselho não opera sozinho: desde março, já estão em andamento os trabalhos da Comissão de Especialistas, um órgão de 24 juristas não-eleitos indicado pelo Congresso para auxiliar na produção das novas bases legais do país. Esse grupo precisa concluir suas funções ao longo do próximo mês, entregando seu esboço para o Conselho recém-eleito exatamente no dia em que o novo órgão começar a funcionar.

A ultradireita não vai aprovar nada sozinha, mas ninguém fará nada sem o aval dela

O anteprojeto poderá ser alvo de alterações, emendas e até supressão de trechos, e os “especialistas” da Comissão continuarão assessorando o Conselho, mas sem direito a voto. Para uma mudança ser aprovada, serão necessários 3/5 dos conselheiros e, para rejeitar algo, a exigência é de 2/3 dos votos. Por isso, a chave do processo está com os republicanos, que terão mais de 40% do órgão. A ultradireita não conseguirá aprovar nada sozinha, mas ninguém fará nada sem o aval dela.

O trabalho todo envolve menos pessoas e tempo do que a antiga (e fracassada) Convenção Constitucional eleita em 2021, que teve 155 representantes e se estendeu por um ano. Na época, com o país mergulhado em um sentimento político completamente distinto do visto agora, a esquerda obteve tantos representantes que conquistou a capacidade de aprovar os temas que quisesse sem negociar com a oposição – algo que ocorreu em diversos momentos e resultou no “erro” mencionado por Boric após a derrota deste domingo. O texto oriundo da antiga Convenção, recheado de ambições progressistas, foi facilmente atacado como irrealista por setores conservadores, encontrou reservas até em partes da centro-esquerda e, em setembro de 2022, o plebiscito pela adoção da Carta viu 62% dos eleitores votarem “não”, sepultando-a.

Agora, o Chile tenta tudo de novo, mas com a bússola ideológica indicando o outro lado – ironicamente, será a direita quem terá a penúltima palavra (a última será o plebiscito em dezembro) na mais nova tentativa de substituir a Constituição herdada da ditadura de Augusto Pinochet.

E se houver outro “não” no horizonte?

A grande presença ultraconservadora da nova Constituinte já faz setores à esquerda temerem um texto que não se distancie tanto daquele que se busca substituir. Com o foco na segurança pública que muitos eleitos prometem, é possível inclusive que alguns dos chamados “resquícios autoritários” do pinochetismo – parcialmente revogados em uma reforma realizada durante o governo de Ricardo Lagos (2000-2006) – tenham um ressurgimento sob roupagem nova. O que leva imediatamente à questão: se esse for o caso e houver uma campanha bem-sucedida para rejeitar outra vez a proposta de Constituição, o que acontece?

A resposta é tão simples quanto incapaz de solucionar a dúvida: ninguém sabe. O acordo hoje existente entre os diferentes setores políticos só estabelece um caminho claro para a substituição do texto que já existe, sem detalhar o que aconteceria se o plebiscito de dezembro outra vez demonstrar que a população não aprova a nova redação. Na prática, seguirá valendo a Constituição atualmente em vigor, mas as portas não estão necessariamente fechadas para que se tente uma terceira Constituinte. No momento, porém, tanto líderes quanto analistas políticos chilenos entendem que nesse cenário não haveria clima para propor reiniciar o processo de imediato, e a verdadeira dúvida é se surgiria um acordo claro para manter o texto atual ou se a questão seria adiada indefinidamente.

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