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Crônica – Papa Bento, Lula, Berlusconi, um golpista e a briga

Há bastidores de coberturas nunca contados, mas que animam papos em mesa de bar. Eu conto um dos mais bizarros. Aos colegas que o vivenciaram, um pedido: não me crucifiquem!

Deborah Berlinck, da Headline
#JORNALISMO6 de jan. de 236 min de leitura
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva se encontra com o Papa Bento XVI, durante sua reunião em 13 de novembro de 2008, no Vaticano. Foi a primeira visita do presidente Lula ao pontífice. Fotos: Christophe Simon/POOL/AFP
Deborah Berlinck, da Headline6 de jan. de 236 min de leitura

O Papa Bento XVI entrou para a história do Vaticano como o papa que não queria ser papa: foi o primeiro a renunciar em 700 anos. No século 14, um eremita, Pietro Angeleri di Murrone, foi eleito pontífice, transformou-se em Papa Celestino VI, mas não aguentou, renunciou, e em 6 meses voltou a ser eremita.

Mas no jornalismo brasileiro, Bento XVI também entrou para a história como o pontífice que protagonizou uma das coberturas de imprensa mais conturbadas das várias viagens presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva.

Uma cobertura que resultou numa briga monumental e que foi coroada por um roubo espetacular – com um prejuízo de alguns milhares de dólares – na sala de imprensa que o Planalto instalou num hotel em Roma.

Roma, novembro de 2008

A viagem de Lula a Roma começou num clima de paz e amor. Mais que isso, de euforia. Afinal, quem não quer ir a Roma comer bem, ver uma cidade linda e ainda ter o privilégio de trocar uma palavrinha com o papa no lugar que um turista jamais vai ter acesso – seu suntuoso aposento privado no Vaticano?

E foi aí – na escolha de quem ia ter essa oportunidade única – que começou a confusão. Em 2008, o jornalismo brasileiro não estava abertamente em crise. As empresas investiam pesado na cobertura das viagens presidenciais. Desembarcou em Roma um grupo destacado do jornalismo do país, representando as grandes empresas jornalísticas, várias TVs, rádios. Tinha até TV religiosa.

Mas o clima mudou quando o Palácio do Planalto anunciou que a Santa Sé só permitiria a entrada nos aposentos do papa de quatro profissionais de imprensa: um de imagem (cinegrafista) e três jornalistas do impresso. Coube a Franklin Martins, então ministro e chefe de comunicação de Lula, dar a má notícia.

As caras se fecharam. Todo mundo queria de ir.

Surgiu a ideia de um sorteio e de um "pool" – jargão que quer dizer: os sorteados passariam todas as informações para o restante. É pratica corriqueira na cobertura jornalística nos EUA, mas que caiu mal na versão brasileira.

Uma profissional de TV protestou. Como representante da única TV que tinha correspondente em Roma – e reivindicando ser especialista em papas – insistiu que um dos lugares deveria ser dela. "Espere aí, por que só você? ", lançou a jornalista de uma TV concorrente. Esse foi apenas o início.

Lula tinha encontro oficial com Silvio Berlusconi – um primeiro-ministro da Itália muito pouco católico que acabou sendo condenado e banido da vida pública em 2013 por ter organizado, justamente nessa época, orgias com menores de idade, além de outros crimes.

A comitiva do Planalto seguiu para a casa de Berlusconi. E os jornalistas seguiram brigando dentro do ônibus que a presidência organizou para a imprensa.

Foi na residência de Berlusconi que o Planalto realizou o fatídico sorteio. A essas alturas, os nervos estavam tão exaltados que a equipe de comunicação do Planalto foi buscar um jornalista italiano para pedir que tirasse da cartola os nomes escritos num papelzinho, para que ninguém bradasse que houve "fraude" no sorteio.

Eu era correspondente do Jornal O Globo na Europa. Fui premiada. Leonêncio Nossa, do Estadão, foi outro sortudo. E a terceira foi uma jornalista de um jornal que pouco tempo depois faliria. Sorrisos. Mas um dos maiores jornais do Brasil ficou de fora e seu enviado especial não gostou. Do lado das televisões, o resultado do sorteio teve o efeito de uma bomba: a única correspondente em Roma não foi selecionada.

Um "pool" jornalístico que não deu certo

Na realidade, o encontro do presidente Lula e de sua então esposa Marisa Letícia com o Papa Bento XVI era importante pelas imagens – que todos os jornalistas credenciados pelo Planalto necessariamente teriam.

Lula e Dona Marisa nos corredores do Vaticano, após o encontro com o Papa Bento XVI, em 13 de novembro de 2008. Foto: Christophe Simon/POOL/AFP
Lula e Dona Marisa nos corredores do Vaticano, após o encontro com o Papa Bento XVI, em 13 de novembro de 2008.

O que se passou nos aposentos do papa não merecia mais do que poucos parágrafos do tipo: num salão "assim, assado", o presidente e a primeira-dama se encontraram com o papa durante "x minutos", Bento XVI deu a Lula "tal presente", o presidente retribuiu com "tal presente" e disse "bla,bla,bla".

O que causou a crise foi não ser possível para todos aquele momento que todo jornalista quer: o "Eu estava lá!". De fato, Vaticano não é uma experiência qualquer. Os aposentos privados são um mergulho na história da Santa Sé. Há verdadeiros tesouros de arte nas paredes. A ideia inicial era de que teríamos apenas alguns minutos lá, para ver o encontro de Lula com o papa. E pronto.

Mas o Vaticano nos reservou algo melhor. Uma freira baixinha, com senso de humor aguçado, nos acompanhou num verdadeiro tour pelos aposentos. No caminho, perguntei se poderia fotografar o papa. "De jeito nenhum", respondeu a freira. Passávamos por uma janela e brinquei: "Se fotografar, o que acontece? Vão jogar a gente pela janela?". E ela respondeu: "O Vaticano já viu coisa pior".

Bento XVI recebia chefes-de-Estado e de governo no terceiro andar do Vaticano – onde morava e trabalhava. Chegou aquele momento "a-ha!" em que cada um de nós apertou as mãos do papa, trocou algumas palavras com ele, e recebeu uma medalha com a sua efígie. "Você vem de onde no Brasil? ", me perguntou Bento XVI. "Do Rio de Janeiro", respondi, sem saber como continuar a conversa com aquela figura austera que não deixava margem para descontração.

O fim da visita ao papa foi rude.

"Quando saímos do Vaticano , era como se tivéssemos entrado no Coliseu cheio de leões. Os repórteres que não tinham sido sorteados vieram para cima da gente. Ninguém entendia porque tínhamos demorado tanto", lembra Leonêncio Nossa.

Os jornalistas estavam quase aos tapas na hora da entrevista coletiva do presidente Lula. Um deles perdeu a paciência e ameaçou: "Eu vou publicar toda essa briga no jornal!". O Ministro Franklin Martins entrou na sala implorando: "Acalmem-se, por favor, o presidente Lula vai entrar na sala".

A cereja no bolo: o trambiqueiro se infiltra

Nesta cobertura, a sucessão de trapalhadas não parou no papa nem no bate-boca irado entre repórteres. Orientado pela embaixada do Brasil em Roma, o Planalto teve a brilhante ideia de montar a sala de imprensa no porão de um hotel em Roma, onde o celular não pegava. Era preciso subir para o lobby do hotel para se comunicar.

A única coisa boa na sala de imprensa sem janelas parecia ser o prestativo funcionário do hotel que subia e descia as escadas sem parar nos oferecendo cafezinho. "Quer mais um?", me perguntou. De uma gentileza fora do comum.

Uma equipe de televisão decidiu sair para almoçar. Com medo de deixar o valioso equipamento na sala de imprensa, perguntou ao funcionário onde poderia guardar a tralha com segurança. "Deixe comigo, vamos guardar na recepção do hotel".

Foi a última vez que a equipe viu seu equipamento – câmeras, microfones, luzes, no valor de milhares de dólares, desapareceram. O "funcionário", na verdade, era um trambiqueiro italiano conhecido da polícia. Fechamos a cobertura com um golpista infiltrado na comitiva.

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