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Oliver Stuenkel: "Liderar na América Latina hoje é mais difícil"

Deborah Berlinck, da Headline | Genebra

Em um mundo mais polarizado e turbulento, a melhor aposta do país para assegurar sua relevância internacional é liderar no tema que todos querem: meio ambiente

3 de jun. de 2322 min de leitura
3 de jun. de 2322 min de leitura

Lula não pode mais apostar tanto na diplomacia presidencial como fez no passado, avalia Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP. Como outros presidentes da América do Sul, ele provavelmente terá de passar mais tempo na capital lutando por sua sobrevivência política. Essa é a nova realidade: o continente todo está mais polarizado, enfraquecido economicamente e volátil politicamente.

Reunir 11 líderes da América do Sul esta semana em Brasília na busca de ideias para uma maior integração, "foi um grande passo positivo", segundo Stuenkel. Sobretudo depois de quatro anos de crises do governo Bolsonaro com os dirigentes da região. Mas Lula escorregou feio ao defender Nicolas Maduro como um democrata, levando os presidentes do Chile, Gabriel Boric (esquerda), e do Uruguai, Luis Lacalle Pou (centro-direita) a reagirem contra. Por conta disso, a cúpula será lembrada pelo que desuniu – e não pelo que uniu os líderes, lamenta Stuenkel.

"Os comentários do Lula sobre a Ucrânia não mudam a realidade na Ucrânia, mas os comentários de Lula sobre a Venezuela mudam a realidade da Venezuela. Representam uma derrota muito significativa para aqueles que defendem a democracia, porque o Brasil diz 'nós estamos com o governo Maduro, apesar de toda a repressão que aconteceu nos últimos anos'".

Em entrevista à Headline, Stuenkel analisa a recém-iniciada política externa de Lula 3 aos olhos das mudanças que ocorreram no mundo desde o seu primeiro mandato, há 20 anos. E estas mudanças são consideráveis.

Primeiro, o Brasil deixou de ser a estrela emergente do passado. No continente, a China ocupou o espaço. Hoje as trocas comerciais da Argentina e do Chile com os chineses são muito mais importantes do que antes. "O Brasil continua sendo um parceiro comercial importante para todos os países, mas bem menos do que anos atrás".

E os tempos em que líderes passavam muitos anos no poder, como foi no caso de Néstor Kirchner, na Argentina, ou Evo Morales, na Bolívia, acabou. Um sentimento do anti-establishment tomou conta do continente. Esperem um troca-troca de governos nos próximos anos, prevê Stuenkel – o que também limita a capacidade do Brasil liderar sozinho.

"Provavelmente teremos um governo de direita ou extrema-direita na Argentina. O cenário mais provável é que surgirá um governo de direita no Chile também a partir de 2025", explica.

Portanto, para que suas ideias sobrevivam às mudanças, Lula deveria focar menos em questões políticas e mais numa cooperação técnica com os vizinhos. "A Venezuela chegou a fazer parte do Mercosul, mas não fez absolutamente nada para se integrar de fato", sublinha.

Fora da região, a realidade é igualmente dura: um mundo multipolar mais turbulento, com uma transformação estrutural do sistema internacional, onde "o Brasil não é mais visto, a princípio, como uma potência emergente".

No lugar de gastar suas fichas com a Ucrânia, o Brasil, segundo Stuenkel, tem um grande trunfo, se souber explorá-lo, no bom sentido: a defesa do meio ambiente e a luta contra as mudanças climáticas. Ao contrário dos governos Lula 1 e 2, esta questão hoje está no centro de preocupações das potências e de vários países. Portanto, a melhor aposta do país para assegurar sua relevância é liderar no tema que todos querem: meio ambiente

Leia os principais trechos da entrevista:

Headline – Lula reuniu os líderes sul-americanos com a ambição de levar os países da região a se integrarem mais. Política regional que foi uma promessa da campanha de Lula. Qual a força política de Lula hoje para liderar essa integração no continente?

Oliver Stuenkel – A cúpula representa um grande passo positivo. Tivemos a pior crise na relação no Brasil com vários dos seus vizinhos em décadas. Apesar da relevância declinante da região para o Brasil em termos econômicos, é evidente que o país não consegue resolver muitos dos desafios que enfrenta sem a ajuda dos outros países da América do sul. Toda a temática de segurança pública, de proteção do meio ambiente, do refúgio, dos migrantes na região, segurança de fronteiras, enfim, uma longuíssima lista de questões que requerem uma coordenação. E isso requer um diálogo funcional entre os presidentes do continente.

O Brasil, porém, hoje não tem mais a mesma força, tanto por fatores internos quanto externos. Em primeiro lugar, economias como a China hoje são muito mais importantes em termos percentuais para economias como Argentina, Chile e outros do que antes. O Brasil continua sendo um parceiro comercial importante para praticamente todos os países, mas bem menos do que 20 anos atrás.

Além disso, em função da situação interna no Brasil, presidentes não têm mais a mesma capacidade de priorizar a política externa como a 15, 20 anos atrás. Em função de um Legislativo e um Judiciário muito mais ativos e poderosos, presidentes brasileiros hoje precisam dedicar mais tempo para a sua própria sobrevivência política interna e para negociar com o Congresso. A gente está começando a ver isso agora. E eu acho que a tendência de médio prazo vai ser que o presidente (Lula) não pode mais apostar tanto na chamada diplomacia presidencial.

Ele precisa dedicar mais tempo aos desafios que enfrenta em Brasília. A região também é muito mais polarizada. Ela é marcada por sentimentos anti-establishment, por volatilidade política, baixas taxas de aprovação. Tudo isso dificulta esse processo de coordenação regional.

Headline –  Lula estava nos governos 1 e 2 numa posição de força na região. A economia  brasileira crescia, o país gozava de uma crescente influência no plano global, através dos Brics, G20, e etc. Hoje a economia brasileira está debilitada e a geopolítica do mundo mudou. Como é que o Brasil do Lula hoje é visto pelos países vizinhos: como uma potência ou como um país mais enfraquecido?

Oliver Stuenkel – Eu diria que o Brasil é um ator fundamental para qualquer projeto regional na região, porém não consegue liderar sozinho. Então, eu diria que o Brasil pode ter um papel de coordenação, mas não possui a capacidade de se impor, de fato, para convencer países a adotarem determinadas políticas. Isso me parece bem menos provável, porque os interesses econômicos de cada país são profundamente diferentes. A Colômbia possui uma ligação econômica muito mais forte com os Estados Unidos. A Venezuela defende o livre comércio completo. Ou seja, exporta petróleo. Nunca gostaria de fazer parte de uma união aduaneira, porque tem uma estrutura econômica totalmente diferente.

Então, pontualmente, o Brasil possui, sim, a capacidade de pautar a agenda, e, de repente, mobilizar alguns líderes para lidar com determinadas questões, mas liderar na América Latina hoje é mais difícil, porque o tempo que os presidentes se mantêm no poder é muito curto, em função dessa onda que nem é uma onda rosa.

A gente não está vendo só a ascensão de líderes de esquerda. A gente está vendo um desejo do povo de punir sempre quem estiver no poder. Em função disso, provavelmente teremos um governo de direita ou extrema direita na Argentina. O cenário mais provável é que surgirá um governo de direita no Chile também a partir de 2025. E assim os presidentes têm pouquíssimo espaço, muito diferente dos anos 2000, quando lideres como Néstor Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa, Chávez e Lula tinham muitos anos no poder e conseguiram , de fato, sentar ao longo de anos para pensar sobre projetos regionais.

Oliver Stuenkel avalia que "mais técnica for a cooperação, mais chances ela tem de sobreviver às próximas mudanças". Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Headline – Diante disso, quais as chances desses esforços do Brasil na região vingarem? 

Oliver Stuenkel – Eu acho que quanto mais técnica for a cooperação, mais chances ela tem de sobreviver às próximas mudanças. Ou seja, é preciso, hoje, pensar que tipo de cooperação será aceita pelo próximo presidente do meu país, mas também dos outros países na região. Então, nada adianta o Brasil e a Argentina formarem ou iniciarem reformas de cooperação, grandes projetos muito ambiciosos sem ter anuência do futuro presidente ou da futura presidente da Argentina, que terá uma convicção ideológica muito distinta do governo atual.

Pode até ser que o atual presidente da Bolívia esteja disposto a avançar no projeto da criação de uma moeda única. Mas se o próximo presidente boliviano de direita não apoia esse tipo de projeto, não tem uma chance real de avançar a médio e longo prazo. Acho que a cooperação técnica no âmbito do combate contra o crime organizado, a coordenação melhor das políticas públicas já se preparando para uma possível próxima pandemia, a coordenação da gestão dos refugiados, é um tema muito sério.

A redução de barreiras não tarifárias, por exemplo, é outra questão. Em um projeto alguns anos atrás, a gente entrevistou uma série de empresários que possuem empresas menores aqui na região, sobre as dificuldades que eles enfrentam na hora de querer expandir para outro país da América do Sul. Existem muitas barreiras, nem sempre tarifárias. É muito difícil, por exemplo, uma empresa brasileira abrir um escritório na Venezuela, no Chile, na Bolívia, em função das dificuldades. Então esse é uma questão muito tangível. Eu acho muito pouco provável que, se na Argentina um presidente de direita ganhar, ele vai querer reverter esse tipo de iniciativa.

Headline Você sublinhou num texto que a integração regional no passado só funcionou quando havia esse alinhamento ideológico.

Oliver Stuenkel – Sim, mas às vezes nem em momentos de alinhamento ideológico a integração funciona bem. A Venezuela, por exemplo, chegou a fazer parte do Mercosul, mas não fez absolutamente nada para se integrar, de fato. A Venezuela possui uma outra estrutura econômica, não tem nenhum incentivo para fazer parte de uma união aduaneira relativamente protecionista. Antes do embargo dos Estados Unidos contra o petróleo venezuelano, ela praticamente tinha um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. E voltará a ter. As sanções dos Estados Unidos contra a Venezuela vão chegar ao fim. Nesse sentido, a Venezuela é uma economia totalmente aberta, o oposto do Brasil. Então, me parece que o alinhamento ideológico, nesse caso, não é tão relevante assim.

Primeiro, o Brasil deve priorizar a questão do Mercosul. O Uruguai disse que está negociando um acordo bilateral de comércio com a China. Isso vai contra as regras do Mercosul. É um sinal da frustração por parte do Uruguai com a falta de acordos comerciais (no Mercosul). Nesse caso, o Brasil realmente precisa voltar a articular uma visão mais clara que não seja apenas abstrata, mas que realmente possa ajudar os outros governos a entenderem exatamente como essa integração pode ser benéfica para todos os países.

Headline – Historicamente, a busca de uma liderança regional sempre foi uma forma do Brasil se projetar no mundo. Essa é a principal motivação para o Brasil buscar essa integração hoje?

Oliver Stuenkel – Eu acho que a principal motivação, de fato, é uma maior capacidade de lidar com os desafios que a região apresenta. São vários desafios, alguns muito mais graves do que parecem à primeira vista. Os atores que mais se beneficiaram da pandemia na América Latina foram os cartéis. O crime organizado avançou muito porque a pandemia facilitou muito o recrutamento, com milhares de crianças fora das escolas. A miséria voltou em vários lugares da América Latina, o que também facilitou esse processo de trazer pessoas jovens, sem perspectiva profissional , para o crime organizado. Isso avançou muito. Nas nossas entrevistas com ex-presidentes latino-americanos, muitos ressaltam esse desafio. Um ex-presidente paraguaio que foi presidente nos anos 90, me disse que naquela época, os narcos pagavam os presidentes eleitos – não só presidentes, mas os legisladores. Ele disse que hoje os integrantes do crime organizado se elegem diretamente para parlamentos regionais, nacionais. Ou seja, tem uma forte presença, o que, obviamente, afeta profundamente a qualidade das democracias em vários países da região.

Além disso, eu acho que falta na região um debate sobre o futuro da América Latina, da América do Sul em um mundo cada vez mais marcado por turbulências geopolíticas. A região precisa lidar com pressões por parte dos Estados Unidos, por parte da China, e definir o seu caminho. Dificilmente todos os países da região sempre estarão de acordo. Mas me parece fundamental ter plataformas para discutir esse tipo de coisa.

E, por fim, além da falta de complementaridade econômica entre o Brasil e vários países da vizinhança, a qualidade das exportações brasileiras para a América do Sul, para a América Latina, é muito superior à qualidade das exportações brasileiras para a China, para a Europa e para os Estados Unidos. Ou seja, tendem a ser mais bens de valor agregado. O atual governo diz que quer reindustrializar a economia brasileira. Para isso, fortalecer as exportações para a Argentina, para o Chile, para o Peru, vários países aqui na região, é fundamental porque quanto mais o Brasil vender para China – que, acima de tudo, compra commodities – maior dificuldade o país terá para avançar nesse caminho da industrialização.

Headline – Olhando de fora para a América do Sul, você vê uma crescente Influência da China. Os Estados Unidos ainda se preocupa em ter influência na América Latina?

Oliver Stuenkel – Eu acho que a nova guerra fria é global. Ou seja, essa dinâmica que a gente percebe aqui de uma luta pela influência, ela acontece na Ásia, na América do Norte, na Europa, na África, no Oriente Médio. E isso é comum em sistemas com várias grandes potências: elas buscam defender seus espaços. Isso não necessariamente é uma coisa ruim. Inclusive, eu diria que na interpretação do atual governo brasileiro e de vários outros governos da região, a ascensão da China pode ser algo positivo, porque dá mais poder de barganha na hora de negociar com os Estados Unidos, que, por definição, é uma relação muito assimétrica. Então isso pode gerar também possibilidades.

A presença chinesa tem gerado vários benefícios econômicos na região e o mais importante, me parece, é não ter que escolher entre os blocos, reter uma autonomia estratégica e também aproveitar as oportunidades que cada bloco oferece. Um dos motivos pelos quais a União Europeia está tão interessada em ratificar o acordo comercial {com Mercosul) é de natureza geopolítica. Há uma percepção de que a Europa está perdendo influência na América do Sul e essa ratificação é vista como uma forma de defender o seu espaço diante dessa atuação cada vez mais presente, cada vez mais visível da China e dos Estados Unidos.

Estamos de volta a um mundo multipolar, um mundo mais turbulento. Mas apesar de tudo isso, a América Latina está longe dos maiores conflitos e dos maiores potenciais conflitos dessa próxima década: Europa do Leste, o mar do sul da China, Oriente Médio. Tudo isso também torna a região muito atraente, porque cada vez mais empresas olham para a América do Sul e dizem: eu preciso de algum lugar para diversificar meu portfólio e aumentar minha resiliência geopolítica.

Eu venho trabalhando com uma série de empresas que nunca consideraram produzir na América Latina, mas que se preocupam um pouco e dizem: "olha, eu tenho 80% da minha produção na Ásia, o que eu faço se tiver um conflito entre a China e os Estados Unidos? De que forma consigo me proteger?". E, diante disso, me parece que a América Latina oferece uma série de vantagens. A maior é a que a chance de haver um conflito local aqui que inviabilize as exportações – como está sendo o caso com a exportação de fertilizantes ucranianos, que não podem ser exportados em função do conflito – são bem mais limitados. Então, é o mundo mais assustador, mas também vejo várias oportunidades para a região se destacar.

Headline – Lula quer criar uma moeda na América do Sul para trocas comerciais, uma desdolarização que também tem sido incentivada pela China, nos Brics (Brasil, China, Índia, Rússia e África do Sul). Nesse esforço de romper com a dominância do dólar, Brasil está certo ou errado? Alguma chance de que isso aconteça na América Latina?

Oliver Stuenkel – Eu acho que isso são processos mais de médio, longo prazo. Aos poucos é preciso procurar um consenso regional. Temos agora um candidato a presidente da Argentina que quer dolarizar a economia. E ele pode ganhar (as eleições). Eu espero que não ganhe, mas há uma chance real que isso aconteça. Então é um tipo de ação que requer algum tempo e requer apoio de todas as lideranças dos países que participam disso. Eu acho que é preciso aguardar um pouco até o ponto em que haja, de fato, interesse em avançar nesse sentido.

A princípio, não é uma proposta ruim. Mas isso requer um preparo muito grande. Um dos problemas principais na região, sempre, tem sido a falta de confiança mútua. E esse tipo de fortalecimento, assim, da cooperação no âmbito comercial, financeiro, tudo isso pode ajudar de fato, para que realmente a região tenha mais laços.

Headline – O bordão de  Lula de que "o Brasil está de volta" está funcionando? O Brasil está de volta ao cenário global como no passado, ou algo mudou?

Oliver Stuenkel
 – Bom, primeiramente, o Brasil hoje não possui mais o mesmo peso econômico. Os últimos 10 anos foram devastadores para toda a América Latina, a região que menos cresceu. O PIB per capita do Brasil hoje é praticamente o mesmo PIB per capita de 10 anos atrás. E várias economias da Ásia crescem a 5% por ano. Eu sinto muito isso quando viajo para a Ásia. O clima entre pessoas da minha geração, por exemplo, é completamente diferente. Alguém da minha idade da Índia geralmente conseguiu dobrar ou triplicar o seu patrimônio. É uma situação muito diferente daquela que a gente vê aqui, onde dá para sentir a frustração, o desapontamento depois de muita expectativa nos anos 2000. E foram 10 anos muito frustrantes, com uma dificuldade enorme para reter talentos. Muitos jovens pesquisadores brilhantes saem do país em busca de outras oportunidades.

O Brasil não é mais visto como uma potência emergente. A economia brasileira precisa voltar aos trilhos de certa forma. Precisa mostrar que é possível crescer novamente acima de 3%, 4%, para poder se projetar como um ator relevante no futuro. Agora, o Brasil tem uma vantagem grande em comparação com a realidade de 10, 15 anos atrás: hoje, a mudança climática e o desmatamento deixaram de ser temas dos ministérios do meio ambiente. Hoje é um tema de segurança nacional. É um tema dos ministérios da economia. É um tema dos ministérios da defesa. Ou seja, nenhuma grande liderança internacional, nenhum país trata a mudança climática apenas como um tema.

E o Brasil é um ator chave. A grande pergunta é: o Brasil será parte do problema ou parte da solução? Eu acho que nos últimos anos o governo foi muito explícito dizendo: "olha, nós não queremos nos destacar na luta contra a mudança climática, contra o desmatamento". Por definição, o governo Bolsonaro foi visto como parte do problema. Agora a narrativa mudou. Eu sei que tem muitos desafios internos. A gente viu ao longo dos últimos dias as dificuldades que a atual ministra Marina Silva (ministra do Meio Ambiente) terá. Mas mesmo assim, eu acho que isso continua sendo uma grande oportunidade. É consenso no mundo de que o Brasil precisa estar na mesa na hora de discutir esse tema que é visto globalmente como o mais urgente, o mais importante – o que mais merece recursos nos próximos anos e décadas.

Headline – Você sublinhou a mudança geopolítica. Hoje, a política externa do governo Lula 3 fala de novo no retorno do Brasil como protagonista global e numa política externa "ativa e altiva", exatamente como foi desenhada pelo Celso Amorim lá atrás. Estamos olhando pelo retrovisor ou para frente? Você acha que a política externa hoje, tal qual ela está sendo desenhada, tem essa consciência de uma mudança no jogo geopolítico ?

Oliver Stuenkel
– Me parece que a estratégia do não alinhamento e da neutralidade, hoje, é uma um caminho mais difícil, mais desafiador. Em 2010, as tensões entre os Estados Unidos e a China eram mais simbólicas. Em 2006, trabalhei como tradutor no Fórum Econômico Mundial (em Davos, na Suíça) . E naquela época, o Brasil tinha uma presença enorme. Tinha Gilberto Gil, Bill Gates, Lula, Celso Amorim e Bono (vocalista do grupo de rock U2). Enfim, todo mundo conversando, e o Brasil, como a bola da vez. O Brasil conseguiu transitar bem com todos os lados. Não havia nenhum problema. O comércio entre o Brasil e a China estava explodindo. A China estava numa fase histórica de comprar cada vez mais commodities, mas o comércio do Brasil com Estados Unidos também estava em ascensão. Não havia uma corrente antiglobalização nos Estados Unidos. Então, era um mundo mais fácil para o Brasil, em que o Lula nunca tinha que realmente fazer  escolhas difíceis.

É claro que algumas coisas causaram fricção. A tentativa de negociar um acordo nuclear com o Irã causou algum mal-estar com os Estados Unidos. Mas nada comparável com agora, quando um representante do governo americano chega e diz: "olha, se vocês utilizarem a tecnologia chinesa na construção da rede 5G, a gente não pode mais compartilhar informações sensíveis com as Forças Armadas brasileira". É uma outra categoria de dificuldade que limita o espaço de manter essa flexibilidade que tem sido uma marca registrada de praticamente todos os governos (brasileiros), com poucas exceções.

Passaram-se cinco meses. O governo ainda está na sua fase inicial. Eu acho que só agora o próprio presidente percebe quanto tempo ele precisa estar em Brasília para tentar negociar com os presidentes do Congresso, do Senado, etc. São todas questões que requerem muita atenção.

Alguns primeiros sinais mostram que talvez o presidente (Lula) tenha subestimado um pouco o espaço que o Brasil tem para preservar seus laços com todos. Os comentários sobre a Ucrânia causaram uma reação muito forte, porque na Europa – onde a elite política e também a população é muito afetada pela guerra e pela preocupação de que a Rússia possa avançar mais, com mais impacto econômico da guerra – a tolerância com comentários como o de que a Ucrânia é tão responsável quanto a Rússia pela guerra, isso causou uma reação bastante forte. Eu acho que o Brasil pode ter um papel de mediação, mas eu acho que é um caminho mais difícil para chegar lá do que talvez tenha sido uns 15 anos atrás.

Headline – Essa defesa do Nicolas Maduro como "democrata" não queima também as chances do Brasil de se apresentar como mediador da crise da Venezuela?

Oliver Stuenkel – Acho que sim. Eu falei logo depois dessas declarações com vários integrantes da sociedade civil venezuelana, com várias pessoas da oposição. E, enfim, o Brasil já não tinha mais um papel tão relevante nessas negociações. Mas depois dessas declarações, é evidente que o país tem lado nessa nessa briga. Eu também acho que a crise venezuelana não tem solução. Eu acho que daqui a 5 anos o Nicolas Maduro será ainda o presidente da Venezuela. A oposição é muito mal organizada, muito enfraquecida pela imigração. E também cometeu muitos erros.

Mas depois desses comentários (de Lula), certamente o Brasil tem ainda menos espaço. Mas eu também não considero um conflito onde há muito potencial para avanços reais e duvido que as eleições do ano que vem na Venezuela sejam minimamente livres ou justas.

Headline – Depois destas declarações em relação à Ucrânia ,e agora em relação ao Maduro, o Brasil ganharia se Lula ficasse mais calado?

Oliver Stuenkel – É. Ou se falasse talvez sobre outros temas, onde o Brasil é um ator relevante por definição. Tem uma diferença entre os comentários sobre a Ucrânia e os comentários sobre a Venezuela, que eu acho que é importante destacar. Os comentários do Lula sobre a Ucrânia não mudam a realidade na Ucrânia, mas os comentários do Lula sobre a Venezuela mudam a realidade da Venezuela. Eles representam uma derrota muito significativa para aqueles que defendem a democracia na Venezuela, porque o Brasil diz: "nós estamos com o governo Maduro, apesar de toda a repressão que aconteceu nos últimos anos, não haverá uma crítica". Então, também, de certa forma, incentiva ao presidente venezuelano a continuar com essas táticas, essas práticas de repressão. Então isso é significativo.

O maior país da América do Sul chama o Maduro e não o critica, não o pressiona. Pelo contrário, diz que o Maduro possui legitimidade democrática. Então, eu acho que isso acabou tendo um impacto maior do que o que ele disse sobre a Ucrânia.

Mas como eu disse, eu acho que o tema ambiental é o tema. E onde há muito espaço. Em poucos meses, Lula conseguiu negociar aportes significativos dos Estados Unidos, do Reino Unido. E me parece que isso precisa ter uma prioridade. O potencial é grande, porque é muito difícil para um país negar um pedido desse quando o Lula faz uma apresentação e, publicamente pede o apoio financeiro de um determinado país, não só países ocidentais, mas também países como a China, o Japão, a Índia, que todos possuem a princípio aí uma relevância grande para apoiar o Brasil nesse processo de poder contribuir mais como um ator que consegue liderar esse combate contra as mudanças climáticas.

Headline – Mas se Marina Silva sair do governo atirando para tudo quanto é lado e dizendo que o Brasil quer explorar petróleo na Amazônia?

Oliver Stuenkel – Pois é, tem sempre a questão interna também. Mas eu continuo achando que isso é um ruído que tem a ver não tanto com o tema ambiental, mas mais com essa negociação inicial que está acontecendo, e que vai definir a relação do Executivo com o Legislativo.

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