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“Millôr é resultado de uma circunstância muito especial”

Biógrafo de Millôr Fernandes, Paulo Roberto Pires fala sobre importância de celebrar o centenário de um artista sem paralelos

Gaía Passarelli, da Headline | São Paulo
#ARTE19 de ago. de 235 min de leitura
Millor Fernandes no Rio de Janeiro em 1976 | Foto: Madalena Schwartz/ Acervo Instituto Moreira Salles
Gaía Passarelli, da Headline | São Paulo19 de ago. de 235 min de leitura

Millôr Fernandes, que completaria cem anos essa semana, foi um artista sem paralelo. Isso no Brasil, ou em qualquer outro lugar. Se norte-americano fosse, já teríamos, certamente, biografias disponíveis, quem sabe até um filme para o cinema. Como estamos no Brasil, Millôr segue como um segredo bem guardado e muito nosso. Mas a história do jovem de origem triste que venceu adversidades e se tornou amplamente reconhecido se valendo de talentos múltiplos deve, sim, ser publicada em livro — missão do escritor, editor e professor Paulo Roberto Pires, que pretende vê-la nas vitrines das livrarias no final 2024. A confirmar.

A tarefa, de fato, não tem nada de simples. Pelo contrário. É tão grande quanto seu objeto de estudo, um homem de intensa atividade como jornalista, desenhista, chargista, tradutor, escritor e dramaturgo.

“Tem uma parte considerável [da biografia] escrita. Mas não só não é simples, como também é um trabalho muito extenso, porque estamos falando de uma produção de setenta anos”, conta Pires. Aos 56, o carioca professor da Escola de Comunicação da UFRJ é editor da revista de ensaios Serrote. Também é integrante da equipe responsável pelo acervo de Millôr no Instituto Moreira Salles, que preserva toda a obra e o arquivo pessoal do "guru do Méier", bairro do subúrbio do Rio de Janeiro onde o jornalista nasceu.

“O Millôr foi um sujeito com exata noção de sua importância desde muito cedo. O arquivo é muito bem documentado,” relata Paulo. “Depois que o acervo chegou ao IMS, eu comecei a entrevistar pessoas que foram importantes na vida dele e fui construindo a ideia da biografia. Mas é um trabalho que exige cuidado, porque trata de um personagem enorme e complexo.”

“O Rio de Janeiro continua lindo”
“O Rio de Janeiro continua lindo” Millôr Fernandes, 2001 | reprodução

Arquivista de si mesmo

Millôr nasceu Milton Fernandes em 16 de agosto de 1923. Entrou jovem para a imprensa e manteve uma atuação permanente em jornais e revistas como Jornal do Brasil e Veja, além de peças de teatro, livros, ilustrações e pinturas. Foi tradutor para o português de obras de Shakespeare, Pirandello, Molière, Brecht, Tchekov, Gorki e Fassbinder.

Uma faceta pouco conhecida, porém, essencial na comemoração de seu centenário, é a de determinado arquivista de si mesmo. Em seu estúdio em Ipanema, Millôr guardou ao longo de décadas, de forma sistemática, em gavetas e estantes, praticamente tudo o que produziu e pesquisou. Após sua morte, em 2012, esse enorme acervo foi cedido em regime de comodato ao Instituto Moreira Salles pelo filho de Millôr, Ivan Fernandes.

“O Millôr era um excelente arquivista”, explica Pires, um dos responsáveis pelo recebimento do arquivo junto ao desenhista Cássio Loredano e da coordenadora de acervo Julia Kovensky. “São setenta anos de trabalho quase integralmente documentos por ele mesmo. É tudo muito bem conservado. Tem documentos burocráticos, cartas importantes, e uma catalogação de temas maravilhosos como bigodes, que tem desenhos e piadas sobre bigodes, ou camarões, que têm coisas sobre a República de Camarões e sobre camarão. É uma indexação Millôr Fernandes, que não será mexida.”

“A importância de marcar esse centenário é voltar ao Millôr e dizer: olha o tamanho desse cara!”

Parte desse arquivo foi apresentado ao público em uma bem-sucedida exposição que passou pelas unidades São Paulo e Rio de Janeiro do IMS entre 2016 e 2018. E, depois, formou “Millôr: Obra Gráfica”, volume ganhador de dois prêmios Jabuti. Além disso, como celebração do centenário, o instituto disponibilizou na internet quatro mil desenhos de Millôr. Eles já estão disponíveis no site do IMS.

Guernica um minuto antes.G uernica um minuto depois, Millôr Fernandes, 1981
“Guernica um minuto antes. Guernica um minuto depois”, Millôr Fernandes, 1981 | Foto: reprodução

Um individualista indomável

Em artigo especial para a Ilustrissima nesse domingo, o biógrafo chama o jornalista de “individualista indomável”.  É uma questão filosófica, explica. “O Millôr tinha horror a qualquer tipo de coletivismo, fosse uma equipe esportiva ou partido político. Foi um cara com uma filosofia implacável. Isso também o torna uma pessoa difícil, que tinha horror a qualquer movimento coletivo.”

Essa ética de trabalho inesgotável e a consciência da própria capacidade, diz Pires, tem ligação com a história de Millôr. “Não tento buscar uma mecânica biográfica para justificar. Mas esse é um sujeito que sai da extrema pobreza e precariedade, inclusive afetiva, que perdeu os pais muito cedo e foi viver de favor com a família. É, portanto, alguém que entende o valor do empenho intelectual que começou a exercer desde cedo. Ele nunca parou de trabalhar, vai e vem o tempo inteiro, está sempre estudando. O arquivo é uma continuação disso.”

Millôr foi também um exímio frasista, autor de centenas de pérolas, como atesta “Millôr Definitivo: a Bíblia do Caos” (L&PM, 2004) — muitas, inclusive, que não cabem no nosso tempo. Pires destaca sua preferida: “livre pensar é só pensar”.  

“Veja o que acontece quanto uma pessoa é livre para pensar e criar,” pontua o biógrafo. “As pessoas repetem essa frase sem pensar muito, porque livre pensar é uma coisa dificílima. Mas ele é a encarnação desse livre pensar, não estava nem aí para se as pessoas acham isso ou aquilo. Ele dizia ‘eu não queria ter fama, queria ter prestígio’. Então, é uma pessoa que consegue ter um sucesso profissional imenso sem puxar o saco do público e sem ter preocupação de bajular seus pares. Uma pessoa que fez pouquíssimas concessões na vida — se é que fez alguma,”

O que estaria, então, dizendo sobre os acontecimentos no Brasil de hoje? Pires não arrisca uma frase, mas acerta o ponto: "Millôr estaria rindo muito."

Corrosão, Millôr Fernandes, 1975.
"Corrosão", Millôr Fernandes, 1975 | Foto: reprodução
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