Conecte-se

Em foco

#AFRICA

Juventude africana divide-se entre defesa da democracia e apoio aos golpes

Danilo Rocha Lima, da Headline | Paris, França

Jovens do continente expressam suas distâncias das antigas potências coloniais. Eles também defendem regimes mais abertos e plurais, ainda que para isso seja preciso aplaudir um golpe militar

30 de set. de 236 min de leitura
30 de set. de 236 min de leitura

Cinco semanas depois do golpe de Estado no Níger, foi a vez de Ali Bongo ser deposto do poder, no Gabão. Em ambos esses eventos, para não citar o golpe de 2021 no Burkina Faso, imagens de tevês mostram grandes grupos de jovens celebrando os golpes. A região do Sahel tem metade da sua população com menos de 15 anos e 65% dos habitantes tem menos de 30 anos.

Essas estatísticas demográficas servem para explicar a grande desconexão entre os líderes da região e seus habitantes. Os cidadãos esperam que o desemprego seja combatido e que o sistema político responda às necessidades básicas da população, como o acesso à educação e a um bom sistema de saúde. Não foi o que aconteceu. Resultado: celebra-se a tomada do poder por aqueles que simbolizam a mudança do status quo. Por isso, grande parte dos jovens na região exibem-se como apoiadores dos recentes golpes.

Para observadores políticos e sociais da região, o contexto atual também vê o levante das primeiras gerações que não têm mais um contato direto com os antigos colonizadores.

"Estamos virando uma nova página. Não se trata de uma pura rejeição à França, mas, muito claramente, de um novo questionamento da política francesa, da importância da influência que a França teve nas últimas décadas e de um desejo de ter relações normais com os Estados Unidos, com a China, com a Rússia, com a Turquia, com o Brasil e assim por diante", observa o cientista político Gilles Yabi, do think tank Wathi, sediado no Senegal.

A maioria dos países do Sahel está na parte inferior das tabelas de classificação em termos de desenvolvimento humano e índices de pobreza. E de acordo com o Banco Mundial, até 13,5 milhões podem entrar na pobreza até 2050. Além disso, a região é considerada como a mais vulnerável às mudanças climáticas.

Diante da falta de ação frente a esses desafios, "as gerações mais jovens não necessariamente se reconhecem no modelo democrático que lhes foi imposto porque não é um modelo que veio para atender às suas necessidades e expectativas", aponta a pesquisadora Djenabou Cissé, da Fundação francesa para a Pesquisa Estratégica.

Para essa juventude, a classe política, principalmente aqueles que se perpetuam no poder como foi o caso da família Bongo, liderando o Gabão por mais de 55 anos, é vista como representante das antigas potências coloniais e não simbolizam nenhuma renovação na vida política do país.

"Há jovens que querem mudar as coisas e a situação de suas sociedades, quando analisam o a relação que seus países têm com a França. Eles percebem que essa relação não é nada justa e não os beneficia. Mas, no final, são essas mesmas pessoas que estão pagando o preço. Elas se veem deslocadas, sem qualquer ajuda ou apoio, vivem em condições precárias e, quando tentam encontrar outra maneira de sobreviver fugindo do continente, são impedidos de fazê-lo", alerta a militante de direitos humanos Farida Nabourema, da Liga Civil Togolesa.

Nabourema também aponta o alto grau de mobilização da juventude africana, o que faz tremer as autocracias espalhadas pelo continente. Manifestações organizadas por meios das redes sociais tem efeitos visíveis na reivindicações sociais da região.

"Nenhum outro povo se manifestou tanto quanto o povo da África nos últimos 15 anos. Temos a Argélia, o Sudão, o Burkina Faso, o Senegal, a Nigéria, o Togo, a Gâmbia. A África é o continente que tem visto as revoltas mais populares do planeta para denunciar a corrupção. Os golpes de Estado de hoje são as consequências do fracasso dos chamados sistemas democráticos impostos aos nossos povos", afirma Nabourema.

Mas há também no continente analistas que apontam para o perigo diante dessa juventude africana, frequentemente seduzida pela atitude de colocar todos os males do país em apenas uma causa. "É preciso ter um maior senso da história desses países. É preciso conhecer mais a História. Não existe apenas um fator, um culpado ou uma solução. É necessário conhecer como cada um desses Estados foram formados", diz Gilles Yabi.

Moradores aplaudem membros das forças de segurança no distrito de Plein Ciel, Libreville, em 30 de agosto de 2023, depois que um grupo de oficiais militares gaboneses apareceu na televisão anunciando que estavam "pondo fim ao regime atual" e anulando os resultados oficiais das eleições que deram outro mandato ao veterano presidente Ali Bongo Ondimba. Foto: AFP
Moradores aplaudem membros das forças de segurança no distrito de Plein Ciel, Libreville, em 30 de agosto de 2023, depois que um grupo de oficiais militares gaboneses apareceu na televisão anunciando que estavam "pondo fim ao regime atual" e anulando os resultados oficiais das eleições que deram outro mandato ao veterano presidente Ali Bongo Ondimba. Foto: AFP

Virtudes dos golpes

Logo após o golpe no Gabão, as potências ocidentais se viram no embaraço entre condenar a tomada do poder ou apoiar a família Bongo, que liderava o país com mãos de ferro há cinco décadas.

O velho debate sobre "a virtude dos golpes" ressurge com frequência depois desses eventos. Uma vez no poder, os militares africanos se dizem descendentes "Sankaristas" ou "Rawlingstas". Os termos fazem referência a Thomas Sankara e Jerry Rawlings, líderes militares que tomaram o poder no final dos anos 70 e nos anos 80, respectivamente no Burkina Faso e em Gana. Eles são lembrados como nomes que restabeleceram a ordem social e democrática nesses países, depois de golpes.

Entretanto, somente o tempo poderá apontar se as juntas militares que tomaram o poder no Mali, no Níger, no Burkina Faso ou no Gabão merecem usar a alcunha. Por outro lado, Farida Nabourema aponta a hipocrisia ocidental em classificar rapidamente os golpes de Estado nesses países como um perigo à democracia.

"Observadores europeus e americanos não se perguntam sobre o que levou ao golpe de Estado em vários desses países. O sistema cleptocrático dessas nações induziu a esses golpe. Portanto, apesar de controverso, é preciso entender que o golpe de Estado pode ser uma ferramenta que leva à democracia", afirma Nabourema.

"A França teve um golpe de Estado quando Charles de Gaulle assumiu o poder, mas a França não nos dirá que o golpe de Estado de Charles de Gaulle foi um golpe de Estado liberticida. Eles têm hoje uma República que saiu desse golpe, uma República da qual se orgulham. Por isso, não precisam fazer uma leitura tendenciosa e hipócrita da situação na Africa", completa a pesquisadora.

Diante de uma juventude que não viveu a virada do anos 90 e a chegada dos regimes democráticos, a África se confronta a um paradoxo que terá consequências sem dúvidas por gerações. Jovens que apoiam valores democráticos, ainda que para isso seja necessário aplaudir golpistas.

#AFRICA
GOLPES DE ESTADO
JUVENTUDE
DEMOCRACIA