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Juíza internacional sobre matança dos Yanomami: "As provas já são suficientes para crimes contra a humanidade"

Andrei Netto, da Headline | Paris

Para Sylvia Steiner, ex-juíza brasileira do Tribunal Penal Internacional (TPI), há elementos para caracterizar as mortes de Yanomami como crimes contra a humanidade, mas acusação de genocídio ainda depende de investigação

25 de jan. de 2313 min de leitura
25 de jan. de 2313 min de leitura

Durante os anos de governo de Jair Bolsonaro, militantes de esquerda transformaram a acusação de "genocida" em uma palavra de ordem na denúncia contra o ex-presidente brasileiro por sua inação, ou por sua eventual negligência na gestão da pandemia que matou mais de 696 mil pessoas no país. Mas, para juristas, a definição não se enquadrava na realidade jurídica, o que se confirmou pela recusa da procuradoria do Tribunal Penal Internacional (TPI), a mais importante Corte de Direitos Humanos do mundo, em aceitar a abertura de um processo contra o então chefe de Estado.

A revelação de imagens de indígenas Yanomami morrendo de fome e em razão de condições sanitárias desumanas em Roraima, somadas às provas materiais de que diferentes órgão do Executivo – Ministério da Justiça, Ministério da Saúde, Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos – foram informados por ofícios enviados por entidades governamentais e não-governamentais, e nada fizeram, tem potencial para mudar essa interpretação. Segundo a magistrada brasileira Sylvia Steiner, há elementos para que a procuradoria do TPI abra um processo para responsabilização individual, eventualmente contra Bolsonaro e seus ministros e secretários, por crime de extermínio e, dependendo das provas, genocídio.

Não se trata de simples opinião. Steiner foi indicada pelo governo brasileiro e eleita pelas Nações Unidas juíza do TPI, onde trabalhou entre 2003 e 2016. É, portanto, a maior autoridade do Brasil no que diz respeito a processos por crimes contra a humanidade.

Ex-desembargadora federal do Tribunal Regional Federal de São Paulo, e antes disso procuradora da República também na capital paulista, Steiner é mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo, com especialidade no Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Penal Internacional.

Para a magistrada, não há dúvidas: os elementos para a abertura de um processo no TPI para responsabilização individual de autoridades brasileiras pelas mortes de centenas de Yanomami estão dados. Isso poderia se dar, inclusive, pela agregação de provas a um pedido de processo já nas mãos da Corte de Haia enviado pela Comissão Arns e pela Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB). "Genocídio depende de uma comprovação do chamado 'dolo específico', que deve ser feita através da colheita de provas", explica a magistrada. "Mas, inicialmente, me parece que as provas já são suficientes para crimes contra a humanidade."

A juíza Sylvia Steiner na audiência das declarações orais de encerramento do caso do vice-presidente congolês Jean-Pierre Bemba, no Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, em 12 de novembro de 2014. Foto: Bart Maat/POOL/AFP
A juíza Sylvia Steiner na audiência de encerramento do caso do vice-presidente congolês Jean-Pierre Bemba, no Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, em 12 de novembro de 2014. Foto: Bart Maat/POOL/AFP

A seguir os principais trechos da entrevista a Headline.

Headline – Com base no seu histórico de trabalho sobre questões humanitárias e, em especial, no Tribunal Penal Internacional, qual é sua análise a respeito das centenas de mortes por fome e problemas sanitários dos Yanomami?

Sylvia Steiner – É até difícil falar em primeiras impressões, porque isso é uma crônica de mortes anunciadas. É o problema da invasão das terras indígenas. Não é um fenômeno novo. O que chama atenção é o crescimento da invasão e da destruição de diversos territórios que são tradicionalmente ocupados pelos indígenas nos últimos anos, e que coincidiu exatamente com a chegada ao poder de uma pessoa (Steiner não cita o nome, mas se refere a Jair Bolsonaro) que, desde seus tempos de parlamentar, sempre manifestou claramente e muito serenamente o seu perfil anti-indigenista. Não é propaganda da esquerda, como se costuma dizer. Está gravado que o ex-presidente da República achava um absurdo que os Yanomami tivessem um território tão grande, quase do tamanho do Rio de Janeiro. Na época da sua candidatura, ele dizia que não daria nenhum centímetro quadrado a mais de terra para as comunidades indígenas.

Essa era uma atitude, vamos dizer, somente ideológica. Mas a partir do momento em que tomou conta de todo o poder, e de todos os órgãos relacionados com políticas indígenas, passou-se a uma fase diferente, de violência e de combate explícito contra as comunidades indígenas. Então essa é a diferença: antigamente se tolerava, se fazia vista grossa para o desmatamento em uma região, para invasão de garimpeiros em outra região. De repente, isso se tornou uma política de estado anti-indigenista na sua natureza. Os efeitos dessa política agora expressa são calamitosos.

Então eu fiz parte do grupo de juristas que elaborou um parecer para a CPI do Senado sobre a questão da pandemia, e nós tivemos um capítulo destacado em relação ao que vinha acontecendo com as populações indígenas, em especial os Yanomami. E foi constatado, com olhar sereno, olhar de jurista, que aquilo que poderia, sim, em tese, se configurar crime contra a humanidade. Veja a que ponto chegamos.

Headline – Na longa história de genocídios em outros países, a fome é um instrumento de guerra, uma arma de governos que se propõem, de alguma forma, a impor o sofrimento e, quem sabe, a extinção de povos específicos. Isso que saltou aos olhos nas imagens dos Yanomami. Qual é a sua análise a esse respeito?

Sylvia Steiner – Você está correto. A diferença é que aqui a gente não poderia falar em crime de guerra, porque nós não estamos vivendo um conflito armado, mas exatamente em crime contra a humanidade. Quer dizer, crime contra a humanidade e, em tese, até de genocídio, porque causar condições de vida que levem ao extermínio de uma comunidade e causar isso de maneira dolosa (de forma intencional) é uma das figuras do crime de genocídio – que nós temos na lei brasileira e tal como descrito no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

Mas, deixando de lado a ideia de genocídio, porque depende da prova desse "dolo específico", quer dizer, de intenção de acabar com aquela comunidade, trata-se, sem dúvida, no meu entender, de outra das possibilidades de crime também descrita no Estatuto de Roma, que é chamado "crime de extermínio".

O crime de extermínio é descrito como deliberadamente criar condições que levam a destruição de uma comunidade ou de um grupo. Destruição no todo, ou em parte. Então, é uma figura do crime de extermínio como crime contra a humanidade.

Local de extração de ouro abandonado as margens do Rio Mucajaí, em Roraima, no Território Indígena Yanomami, em 31 de julho de 2019. A operação de garimpo acaba causando praias nas margens do rio e contaminando as águas com mercúrio. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Local de extração de ouro no rio Mucajaí, em Roraima, no Território Indígena Yanomami, em 31 de julho de 2019. A operação de garimpo acaba gerando "praias" nas margens do rio e contaminando as águas com mercúrio. Foto: Daniel Marenco/HDLN

E nós temos também o crime de guerra, como você mencionou, que é utilizar essa técnica – como, aliás, na década de 1970, foi utilizada em Biafra e atualmente se utiliza no Iêmen – de proibir a entrada de alimentos, de água potável, de medicamentos, de todos os meios necessários para permitir a vida normal de uma determinada comunidade. Pode ser interpretado, sim, como crime de guerra, como crime contra a humanidade e como crime de genocídio, dependendo dos chamados elementos contextuais. Eu não tenho dúvida sobre isso.

Headline – Organizações não-governamentais e mesmo órgãos ligados à questão indígena, como Funai, advertiram o governo dezenas de vezes de que havia problemas sanitários e de fome nas comunidades Yanomami. Essas advertências não foram sanadas pelo poder público, ao que tudo indica, porque o problema continuava. Isso não significa, de alguma forma, a implicação direta ou indireta do poder público no que aconteceu?

Sylvia Steiner – Sim. Acho que esses ofícios que foram enviados – dezenas de ofícios que foram enviados – a diversos órgãos públicos, ao Ministério da Justiça, ao Ministério da Saúde, ao Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos, a órgãos da presidência da República, são indícios de prova bastante substanciosos no oferecimento de uma denúncia, quer perante o direito interno (no Brasil), quer perante o direito internacional.

As informações vão chegando aos poucos. Não temos acesso imediato a todas as informações, mas ainda ontem foi noticiado por uma procuradora da República que houve uma ação civil pública, proposta pelo Ministério Público Federal de Roraima, que obteve uma sentença favorável da Justiça Federal de primeira instância, confirmada em apelação pelo Tribunal Regional Federal, e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, que determinava que fossem tirados todos os garimpeiros de territórios pertencentes aos indígenas. Do ponto de vista judicial, a questão estaria resolvida. Mas não houve um só órgão do governo, órgãos executivos, que desse cumprimento às ordens judiciais, que foram simplesmente ignoradas, inclusive pela Funai, pelo Ministério da Justiça, por todos. Acho que foi uma política de estado adotada pelo atual governo.

Mais do que uma censura a uma política de Estado, ou uma condenação dessa política de Estado que pode ser levada, por exemplo, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, nós temos nesse caso a possibilidade de individualizar condutas, o que é necessário para gerar responsabilidade penal. Não está difícil de fazer isso.

Headline – Muito se falou ao longo dos quatro anos que Bolsonaro fosse um genocida, em especial pelo tratamento da pandemia de covid-19. Mas o presidente argumentava que a pandemia era uma causa de mortalidade mundial. No caso específico dos Yanomami, parece que a hipótese de ter havido um crime contra a humanidade seria muito mais facilmente "recebível" pelo Tribunal Penal Internacional, não? Estou delirando?

Sylvia Steiner – Não, não está delirando. De forma alguma, durante todo o período da pandemia, essa acusação foi movida até pelo desespero. Inúmeras denúncias foram enviadas ao Tribunal Penal Internacional pedindo a responsabilização do governo Bolsonaro, mas sem talvez um cuidado técnico ou jurídico maior, porque na verdade, o que se buscava era uma responsabilização por uma política desastrosa de tratamento da covid. O Tribunal Penal Internacional não julga políticas, mas, em relação em especial à proteção das comunidades indígenas, a começar pelos Yanomami, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos expediu quatro medidas cautelares – quatro! – determinando ao governo brasileiro a tomada de medidas específicas de proteção dessas comunidades, que são mais vulneráveis. Com a presença de mais de 20 mil garimpeiros no local, os índios são mais vulneráveis. Eles estão sujeitos a doenças para as quais não têm anticorpos, inclusive a covid. Foram quatro liminares de um organismo internacional de respeito, como a corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Fora isso, perante o Supremo Tribunal Federal, uma ação de descumprimento de preceito fundamental. Foram cinco medidas cautelares expedidas pelo ministro (Luís Roberto) Barroso determinando medidas de proteção das comunidades indígenas, a começar por barreiras sanitárias, portanto impedindo pessoas não indígenas que ingressassem nas terras.

No mesmo mês em que saiu a medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o governo autorizou que as mulheres de militares visitassem uma aldeia indígena de índios semi-isolados. Essas mulheres de militares levaram noções de beleza para as índias – como fazer maquiagem, como pintar as unhas – e levaram roupas como donativos, o que fez com que o líder daquela aldeia indígena falar: "Nós não queremos roupas. Nós não somos mendigos".

Relato isso para você ver o tamanho da dicotomia entre o que é uma decisão judicial, quer de um organismo internacional, quer do Supremo Tribunal Federal, e as medidas de governo. O presidente Bolsonaro vetou todos os artigos da lei que previam normas de proteção especial aos índios, incluindo os Yanomami, como facilitar acesso à água potável, recebimento de cestas básicas, à reserva de leitos, de enfermaria e de UTI. Foi tudo vetado.

A soma desses fatores leva a crer que não se trata só de indiferença. Acho que ficou, a partir da epidemia, muito mais claro que se trata de um ataque deliberado contra as populações indígenas, uma política de Estado de ataque deliberado. Essa é a definição de um crime contra a humanidade.

Então, o elemento contextual está muito claro. Portanto, creio que agora, somando-se todos os documentos que o atual governo está tendo acesso, acho que vai ficar muito mais fácil para a procuradoria do Tribunal Penal Internacional avaliar a existência de, no mínimo, crimes contra a humanidade.

O genocídio depende de uma comprovação do chamado dolo específico, que deve ser feita através da colheita de provas. Mas, inicialmente, para crimes contra a humanidade me parece que as provas já são suficientes. O que pode fazer, sim, com que a procuradoria leve adiante as duas únicas denúncias que foram mantidas ainda sob exame, que são a denúncia da Comissão Arns e da APIB, a Articulação de Povos Indígenas do Brasil. Essas duas tratam de responsabilidade pessoal. Toda a documentação mais recente vai ser juntada nessas duas representações e creio que há elementos para que essas investigações sejam levadas adiante.

Headline – Cite um exemplo do que seria uma prova de dolo, uma prova contundente de genocídio.

Sylvia Steiner – O genocídio é uma figura penal surgida no pós-Segunda Guerra. O genocídio exige a comprovação de conduta ou de uma motivação especial. Essa motivação é a destruição no todo e ou em parte de um grupo nacional, étnico, religioso ou racial. Essa intenção, essa motivação de destruição, é o que só a prova dos fatos vai demonstrar.

Headline – As declarações precedentes de Bolsonaro, dizendo, por exemplo, que a cavalaria do Exército brasileiro não foi eficaz como a cavalaria do Exército americana na extinção dos índios não vão nesse sentido?

Sylvia Steiner – Pode ser um indício, mas é mais um discurso ideológico do que um ato de incitação ao genocídio, digamos assim. O exemplo que eu poderia dar é o caso de Darfur, no qual eu trabalhei. Em uma primeira análise, nós juízes entendemos que não havia uma motivação especial de eliminar a população de três tribos (os Fur, os Masalit e os Zaghawa) na invasão pelas Forças Armadas e pelas milícias a mando do presidente (Omar Hassan Ahmad) Al Bashir, e sim ocupar aquelas terras na região de Darfur para que eles (os povos das três tribos) fossem embora. O interesse do governo era nas terras, e não aquela motivação especial de eliminar o grupo étnico.

Essa diferença, muito sutil, é a que distingue o crime de genocídio do crime de extermínio. O resultado é o mesmo: são milhões de pessoas deslocadas à força ou mortas. Mas a motivação tem uma certa diferença. Nós então não expedimos um mandado de prisão contra Al Bashir por genocídio, mas houve um recurso e a Câmara de Apelações do Tribunal disse: "Nesse momento, de expedição de mandado de prisão, não é necessário uma prova do elemento genocida. Basta um indício".

Dentro dessa posição do Tribunal Penal Internacional, uma soma de indícios pode sim levar à denúncia por crime de genocídio. Se se vai provar o elemento motivador ou não, são outros quinhentos. Mas seria suficiente para que a denúncia fosse aceita por genocídio. Mas são tecnicalidades. O crime contra a humanidade é um dos crimes contra a paz. Ele não é um subcrime. Ele está no nível de outros crimes contra a paz, que são genocídios, crimes de guerra e o crime de agressão.

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