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Influência da França e imposição da democracia implodiram regimes africanos
Danilo Rocha Lima, da Headline | Paris, FrançaPopulações africanas rejeitam cada vez mais políticos que encarnam a ingerência da ex-potência colonial. Analistas defendem modelo democrático segundo as realidades da região
Na última quarta, 27, o embaixador francês Sylvain Itté aterrisou em Paris depois de deixar o Níger, simbolizando o epílogo da relação entre Paris e Niamey. A decisão de retirar seu embaixador e as tropas francesas presentes em solo nigerino foi anunciada dias antes pelo presidente Emmanuel Macron, depois do golpe de Estado de julho, que derrubou o presidente Mohamed Bazoum e instalou uma junta militar na liderança do país.
O Níger era considerado um dos últimos aliados africanos de Paris na região do Sahel. O país, que declarou sua independência em 1960, deixou de ser colônia francesa, mas sempre teve relações próximas com o país europeu. Agora, parte dos apoiadores do golpe denunciam justamente a ingerência francesa e pedem o corte brutal na relação com a ex-potência colonizadora.
Além disso, apesar de Bazoum ter sido eleito democraticamente, "as pessoas no Níger não acreditam que Bazoum foi escolhido por meio de eleições livres e justas. A opinião geral no Níger é que a eleição foi roubada e não foi justa porque o principal opositor foi impedido de concorrer e até mesmo de fazer campanha", aponta o cientista político nigerino Rahmane Idrissa.

Ele também salienta que o partido de Mohamed Bazoum permanece no poder desde 2011, fazendo o jogo das cadeiras apenas para mudar o líder da formação partidária. Soma-se a isso o fato de que o partido pertence ao ex-presidente Mahamadou Issoufou, que permanecia influente nos bastidores e escolhia até mesmo o primeiro-ministro. Tudo sob o olhar atento de Paris, que apoiava essa relação cordial e essa "transição de poder". "Os nigerinos realmente odiavam isso porque tinha se tornado um sistema de partido único, de fato", afirma Idrissa.
A tensão com a ingerência francesa no Níger também é voltada contra os militares da França. Depois de ordem da junta militar que tomou o poder, cerca de 1,5 mil soldados franceses devem deixar o país até o final do ano, depois de atuarem na luta antiterrorista.
O fato é que o relacionamento entre a França e os Estados africanos está longe de ser equilibrado. Apesar de 60 anos depois das independências, a relação entre potência colonial e nações colonizadas ainda é forte.
"A própria linguagem dos líderes franceses prova que eles não consideram os líderes africanos como seus colegas, mas muito mais como vassalos. Quando ocorreu o último golpe, no Gabão, o presidente da França, Emmanuel Macron, disse em seu discurso: 'Eu instruí o chefe da CEDEAO' (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental). Isso mostra uma condescendência e um racismo institucionalizado. Ele não falaria assim, não usaria esse verbo com o presidente Joe Biden", afirma Farida Nabourema, militante dos direitos civis no Togo e diretora da Liga Civil Togolesa.
Essa relação histórica difícil explicaria em parte as manifestações violentas de defensores de golpes de Estado, diante de embaixadas francesas no Mali, no Gabão, passando pelo Níger e pelo Burkina Faso.
A crítica à política externa francesa é cada vez mais ácida. Por isso, qualquer liderança política apontada como aliada de Paris sofre pressão ou é retirada do cargo, como visto nos últimos golpes da Africa Ocidental. "A França é a antiga potência colonial, a potência que realizou a maioria das operações militares no continente africano e que esteve na vanguarda da luta contra o terrorismo no Sahel. Ao mesmo tempo, é acusada de não ter planejado nada para a região", diz a pesquisadora Djenabou Cissé, que trabalhou durante 7 anos no Ministério da Defesa francês.
"A presença militar criou expectativas de que, de alguma forma, salvaria a região de seu problema terrorista. Mas a França não está em posição de resolver esse problema simplesmente por meio do aspecto militar, então seu Exército tornou-se o bode expiatório, símbolo muito forte de interferência", salienta Cissé. Para ela, Paris não sabe o que fazer diante da última onda de golpes. Ela afirma que a França está desorientada, não entende o que está acontecendo e resiste a entender a sequência dos recentes eventos.
Há também no imaginário coletivo das populações locais uma falta de compreensão da incapacidade de uma potência ocidental de resolver o problema diante de grupos menos equipados, que conseguem prolongar o conflito por décadas, à imagem do que aconteceu com os Estados Unidos no Afeganistão, por exemplo.
Valores e democracia
Muito além da presença militar, a França e outras potências ocidentais são vistas como nações que impõem valores e um modelo político. E justamente, são as gerações mais jovens que não necessariamente se reconhecem no modelo democrático imposto pelos ex-colonizadores, que não atende às necessidades e expectativas da população local.

O modelo democrático ocidental não resolveu problemas básicos como o desenvolvimento social ou a pobreza. Na maioria dos países do Sahel, o desemprego é visto como uma herança do antigo império colonial.
Por outro lado, debates de sociedade ainda não são bem-vindos, quando a prioridade é garantir a comida, o emprego e o teto das populações. "A diplomacia ocidental está atualmente tentando falar com a geração mais jovem em particular para destacar ações sobre os direitos LGBTQIA+, por exemplo. São ações que eu pessoalmente acho brilhantes, mas que, na verdade, ocorrem em sociedades que ainda são extremamente patriarcais, onde a prioridade é realmente o que vamos poder comer amanhã", explica Djenabou Cissé.
Essa discrepância entre valores e prioridades beneficia um país: a Rússia, que não se compromete com debates de sociedade, principalmente quando certos assuntos como a liberdade sexual são desprezados pelo governo russo. Moscou já é o maior exportador de armas para o continente africano. A cada quatro armas vendidas aos africanos, uma vem da Rússia, que já vende 17% da sua produção aos africanos, segundo o SIPRI, Instituto de Estocolmo para Pesquisa sobre a Paz.
De acordo com um estudo realizado em 2021 pelo Instituto Gallup, o Mali, por exemplo, é o país onde a Rússia tem a melhor imagem no mundo (84% de opinião positiva). Cerca de nove em cada 10 malianos estimam que a Rússia pode ajudar o país na luta contra o terrorismo.
Na verdade, a Rússia tem trocado cada vez mais armas pelo acesso a recursos naturais preciosos, sem pedir condições políticas ou exercer ingerência nos governos locais. "A Rússia de fato garante a ausência de condicionalidade política que agrada às nações africanas no contexto atual. Porém, muitas nações africanas não se deixam enganar e diversificam suas parcerias e alianças", conta Djenabou Cissé.
Em tempos de guerra na Ucrânia, a África tornou-se um terreno onde a Rússia faz valer seu peso diplomático. Em julho, foi organizada a Cúpula Rússia-África, na cidade russa de São-Petersburgo. Do encontro, uma declaração oficial pede que seja criada uma nova ordem mundial multipolar. Ou seja, a Rússia tenta evitar seu isolamento oferecendo apoio militar e a presença do Grupo Wagner. Por outro lado, os africanos expressam a vontade de aprofundar relações com parceiros fora da influência europeia e norte-americana.
Para Rahmane Idrissa, a Rússia também mexe com o imaginário popular que a remete à potência da ex-União Soviética. "A Rússia é vista como herdeira da União Soviética, e a União Soviética é o país que ajudou o Níger e tantos outros da região na luta pela libertação nacional", lembra o cientista político.
A independência desses países, de fato, veio nos anos 60, sem uma verdadeira autonomia. Além da ingerência da França, muitos dos seus líderes continuaram amarrados a práticas coloniais de exercício do poder. Segundo o cientista político Pierre Franklin Tavares senegalês, alguns presidentes africanos agem como se fossem presidentes de conselhos de administração de empresas. Em uma espécie de dominação feudal, eles distribuem o controle de agências que têm acesso aos recursos minerais cobiçados pelos ocidentes. Resultado: apenas uma parte da população beneficia da riqueza oferecida pelos solos desses países.
Além disso, o poder Executivo nessas nações africana onde reina a instabilidade política se apropria do Legislativo e do Judiciário. A única força que se sobressai é o Exército ou as forças de segurança dos palácios presidenciais.
Ou seja, cria-se um ciclo nefasto de hiperpresidencialismo protegido pela hipermilitarização. Mas a história tem mostrado que essas mesmas forças se voltam contra seus fomentadores – como foi no caso do golpe do Níger –, que mantém preso o presidente Mohamed Bazoum, na sua residência oficial. "A consequência é que essa hipermilitarização também enfraquece o presidente. Seu poder depende dessa proteção. E a força que deveria proteger a população, apenas protege seu palácio e garante seu exercício de poder, com condições", salienta Farida Nabourema. Militares e guardas presidenciais sentem-se portanto como a única força digna de receber a confiança do povo e de ser o fiador do poder.

Modelo africano de democracia?
Para resolver essa concentração nas mãos de um único líder ou de apenas um grupo, correntes de pensadores políticos dizem que o modelo ocidental de democracia falhou na África. Para Farida Nabourema, a noção de democracia em vários países do continente ainda é incipiente.
"Alguns países ocidentais tentam fazer os africanos acreditarem que o que estamos vivenciando hoje em nossas democracias é uma democracia. Isso é simplesmente uma mentira. Você verá que os britânicos não aceitarão que lhes digam que isso é democracia quando em um país os dissidentes políticos são presos ou os partidos políticos de oposição são fechados, ou as instalações da mídia são fechadas. Nós simplesmente temos regimes despóticos que se disfarçaram de potências democráticas, que simplesmente usam um aspecto do modelo democrático e os adicionam ao seu autoritarismo", rebate Nabourema.
"Esses países têm uma aparência de democracia. São os mais ricos, os mais poderosos, os mais fortes que se mantêm no poder por meio da violência, da compra de consciência e da manipulação", conclui.
Para o cientista político Gilles Yabi, diretor do think tank Wati , é injusto pensar o que acontece hoje no Níger, no Gabão ou no Mali com as mesmas referências europeias sobre o que é um Estado.
A maioria desses países saiu da colonização há somente seis décadas. Para Yabi, os Estados fortes que conhecemos atualmente não foram construídos em tão curto espaço de tempo. "Esses países africanos ainda são muito marcados por sua história colonial e, acima de tudo, pelas condições de descolonização, ou em muitos países com recursos naturais significativos. Além disso, por muito tempo tivemos uma influência política muito forte, principalmente da França", salienta Yabi.
O crescimento econômico na Africa Ocidental não foi suficiente para gerar uma transformação econômica sólida, sem contar os fatores internos e externos, como disputas políticas e ingerências de outras potências regionais.
Por isso, a construção de Estados fortes na região passa pelo estabelecimento da legitimidade democrática. Mas sob qual modelo? Gilles Yabi descarta o argumento de que o problema é a inadaptação do modelo democrático às realidades africanas.
"Conheço os modelos francês, britânico e sueco e que são muito diferentes do modelo suíço. No modelo suíço, há elementos de consenso, há elementos de gerenciamento da diversidade étnica. Basicamente, quando você tem italianos, alemães, falantes de francês na Suíça, você tem o mesmo tipo de diversidade linguística e cultural que temos em muitos países africanos e eles conseguiram desenvolver, com base na realidade de seu país, um modelo que funciona, que é democrático e que é muito diferente do modelo francês, por exemplo" analisa Gilles Yabi.
"Portanto, acredito que, em vez de simplesmente dizer 'Este é o modelo ocidental que será implantado aqui', precisamos na verdade de um modelo africano", conclui o cientista que aponta a luta contra a corrupção como base para fundar esse modelo do continente.
E os analistas são unânimes em dizer que não é necessário buscar fora do continente modelos que podem inspirar as lideranças políticas africanas. Países como Botsuana, Ilhas Maurício, Cabo Verde e até mesmo a África do Sul podem indicar um norte de estabilidade política, deixando os golpes cada vez mais na prateleira dos eventos de exceção.
"Isso também ajuda a mostrar aos jovens que não há fatalidade e que obviamente temos a capacidade de ter sistemas políticos que funcionam muito melhor", aponta Yabi.