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Falta de punição a atos antidemocráticos estimula insurreição, diz pesquisador

Lucas Ferraz, da Headline | São Paulo

Historiador e professor de academias das Forças Armadas, Francisco Carlos Teixeira da Silva vê lógica e presença militar nos acampamentos bolsonaristas na porta dos quartéis

15 de dez. de 2214 min de leitura
15 de dez. de 2214 min de leitura

A constatação do historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, que por mais de duas décadas foi professor de oficiais das Forças Armadas, é simples: sem punir os responsáveis por atacar a ordem democrática, os tumultos podem aumentar. Mais: ele teme que a marca lulista da negociação e do acordo não tenha efeito num ambiente altamente radicalizado.

"Devemos tirar lições desses episódios em vez de imaginar mais uma vez que somos o país da ternura e da solidariedade, que no fundo somos todos brasileiros e vamos nos congraçar num abraço. Essas pessoas só entendem a linguagem de força, não há como convertê-las nesse sentido. A ilusão da cordialidade brasileira, nesse caso, vai fazer muito mal", disse em entrevista a Headline.

Uma parte da resposta institucional aos ataques foi conhecida nas primeiras horas desta quinta-feira, 15, com o cumprimento de mais de 100 mandados de busca e apreensão para punir apoiadores de Jair Bolsonaro envolvidos nos atos antidemocráticos. A ordem partiu do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que prometeu punição para quem se insurgiu – foram muitos – contra a democracia.

Professor aposentado de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Teixeira da Silva tem pesquisado os atos antidemocráticos e visitou acampamentos de bolsonaristas do lado de fora do Comando Militar do Leste, no Rio de Janeiro, e do Quartel-General do Exército, em Brasília, de onde partiram alguns dos envolvidos no quebra-quebra em Brasília na segunda-feira, 12 de dezembro, dia da diplomação de Lula.

"Há uma lógica militar nos acampamentos, com horários e rodízio. Um percentual muito elevado das pessoas, talvez beirando os 70%, que estão nos acampamentos no Rio de Janeiro e em Brasília são parentes de militares. Há também um grande número de militares, tanto das Forças Armadas, quanto da Polícia Militar", contou.

A pesquisa é para uma livro em parceria com o professor Karl Schurster, da Universidade de Vigo, na Espanha, que deve ser publicado no ano que vem. Eles vão comparar a participação política dos militares na Espanha e Brasil. "A pactuação é muito semelhante, e não por acaso, os dois países estão atualmente em crise, com os militares em cena".

Francisco Carlos Teixeira da Silva. Foto: Arquivo Pessoal
Francisco Carlos Teixeira da Silva. Foto: Arquivo Pessoal

Autor de vários livros, premiado com o Prêmio Jabuti em 2014, Teixeira da Silva é especializado na questão militar. Foi professor em academias como a Escola de Guerra Naval e do Comando e Estado-Maior do Exército, além de assessor do Ministério da Defesa, encerrando a colaboração em 2018, antes da posse de Bolsonaro. Mas ainda mantém laços – 14 dos 16 militares na atual composição do Alto Comando do Exército foram seus alunos ou trabalharam com ele nos últimos 20 anos.

Os trechos editados da entrevista:

Headline – Ao permitirem os acampamento nas portas dos quartéis, os militares não endossam os atos antidemocráticos?

Francisco Carlos Teixeira da Silva – Tecnicamente, eles fizeram um perímetro que estabeleceu até onde o acampamento pode ir. Até agora, pelo menos, esses acampamentos não tiveram a ousadia de invadir uma área militar, o que pode acontecer. Aí a gente veria o tamanho da questão que se coloca. 

Mas, tecnicamente, eles estão em áreas públicas pertencentes à gestão das prefeituras. Isso é o que tem sido dito por fontes militares como a razão pela qual não podem se manifestar. Eles estão perturbados, isso cria um clima de tensão, para entrar nos prédios você tem que passar por verdadeiros corredores poloneses. Mas eles dizem que não podem se mexer em relação a esse processo.

Converso com todos os militares, de forma muito direta. Ontem [segunda-feira, dia 12] estava no Comando Militar do Leste, vi o acampamento. É tão alto o megafone que eles utilizam que, dentro da sala do comando, não conseguia ouvir o que as pessoas falavam. É uma coisa de perturbação intensa. Há uma dificuldade enorme dos comandos militares em dar uma ordem ou fazer uma declaração de basta, eles não estão disponíveis para isso, pelo menos até 1º de janeiro. Não vejo como isso pode ser feito. Está tendo nomeação e substituição de todos os postos de comando do Brasil. 

Headline – Por causa da eleição?

Teixeira da Silva – Claro. No momento em que se tornou claro que os três comandantes atuais não querem continuar sob um governo Lula, toda a máquina se moveu na linha de substituição. Não é um momento para que eles falem alguma coisa. Se eles falarem, também será uma intervenção política. Defender a democracia é tão político quanto atacar a democracia. E eles sabem que a gestão do espaço é da prefeitura, e que a gestão da polícia é do Estado. É uma situação tripartite difícil de ser estabelecida. 

Mas tem outra coisa. Um percentual muito elevado, diria mais de 50%, beirando os 70%, das pessoas que estão nos acampamentos no Rio de Janeiro e em Brasília são parentes de militares. Há também um grande número de militares da reserva. Encontrei membros oficiais superiores da reserva ali. Tanto das Forças Armadas, quanto da Polícia Militar. E com muita organização, aparelhos de som muito bom, banheiros químicos, tenda de alimentação, quer dizer, emana inclusive o espírito de um acampamento militar, com barracas, etc.

Headline – O sr. visitou esses acampamentos para uma pesquisa?

Teixeira da Silva – Estou escrevendo um livro em parceria com o professor Karl Schurster, da Universidade de Vigo, na Espanha, chamado "A República Sitiada", um livro sobre as diversas formas de participação política dos militares na Espanha, Portugal e Brasil. A Espanha faz a transição para a democracia num espaço de três, quatro anos de diferença para o Brasil. A lei de anistia na Espanha é de 1978, no Brasil é de 1979. A pactuação dos partidos políticos, inclusive as reivindicações da justiça de transição, são espelhadas uma na outra. E ambas estão em crise agora. 

Bolsonaristas são retratados após um encontro com o presidente Jair Bolsonaro, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília, em 9 de dezembro. Foto: Sérgio Lima/Poder360/AFP
Bolsonaristas reunidos para um encontro com o presidente Jair Bolsonaro em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília, em 9 de dezembro. Foto: Sérgio Lima/Poder360/AFP

Os militares espanhóis têm aproximação com os partidos de extrema direita, como o Vox. No início do ano, saiu um documento horrendo, uma lista com mais de 3 mil militares afirmando que era preciso uma nova guerra civil na Espanha. Isso mostra que essas transições pactuadas com o antigo regime ditatorial têm um limite de duração e uma elasticidade baixa. Enquanto nas transições feitas por colapso, como é o caso da Argentina, Portugal e Grécia, a democracia se estabelece com mais vigor. 

Headline – Então há uma organização tipicamente militar nos acampamentos? 

Teixeira da Silva – Sim. Há horários fixos para ter pique de manifestação, coisas desse tipo. Muitos, quando chegam 22h, vão dormir e voltam 8h da manhã no dia seguinte. Trata-se de algo organizado e financiado, não espontâneo, que nasceu de massas bolsonaristas radicais enlouquecidas. Esse tipo de análise está turvando a capacidade, seja da Justiça, seja do novo governo, de ver o que de fato está acontecendo. O novo governo, pelo menos até hoje, refletindo o impacto do que ocorreu em Brasília na segunda-feira, tem me feito lembrar da peça teatral O Rinoceronte, de Eugène Ionesco. O rinoceronte na sala incomoda muito, mas vamos fingir que ele não está ali. Vamos fingir que a gente não está vendo eles e que logo vão desaparecer. Mas além do rinoceronte não desaparecer, muitas pessoas estão se transformando nele, tal e qual a peça.

Headline – Como o Lula 3 pode enfrentar esses aglomerações nas portas dos quartéis?  

Teixeira da Silva – Foi o que o Flavio Dino (futuro ministro da Justiça) falou, ele espera medidas para a normalização da vida nesses locais. Se isso não acontecer, a partir de 1º de janeiro ele disse saber o que fazer. Considero essa a mais direita e dura advertência feita por qualquer membro do novo governo. Vemos com clareza que esse desdobramento muito violento teve uma acolhida por parte das autoridades que deveriam evitar isso. Não foi só um bloqueio de rua. Você tentou libertar um preso usando de violência, isso é muito grave. O governo do Distrito Federal, o secretário de segurança dele e o ministro da Justiça ficaram inativos. Você incendeia carros, tenta invadir prédios públicos e não tem ninguém preso. Há fotos de PMs confraternizando com os arruaceiros durante os atos de arruaça, isso é muito grave e implica crime de responsabilidade. 

Headline – O senhor deu aula para tantos oficiais das Forças Armadas e eles estudam muito episódios como os que aconteceram em Brasília. Esse ato seria facilmente classificado como terrorismo interno, não?  

Teixeira da Silva – Claro que seria. E trata-se disso. É preciso ter essa clareza. Se não for considerado dessa forma, mais uma vez se está cometendo um ato de descumprimento da lei. E, nesse momento, descumprir a lei incentiva esse tipo de ação.

Lembrando que os acampamentos têm familiares de militares e militares da reserva. Quando for necessário agir, por exemplo, usando gás lacrimogêneo, essas coisas, seria algo impensável. Seria a primeira vez que se utilizaria força contra manifestantes de extrema direita no Brasil, inclusive de classe média, pertencentes a instituições de controle da própria violência do Estado. 

Dentro da própria Forças Armadas não há unanimidade. Quadros médios – capitão, major, tenente-coronel – estão muito descontentes com o resultado da eleição e não o aceitam. Esse é o outro lado no qual o governo se comporta como o burocrata do rinoceronte. Essas pessoas partilham com os acampados o mesmo sentimento de revolta. O que tem mantido aparentemente coeso o edifício das Forças Armadas é o Alto Comando do Exército,  que impacta diretamente na Marinha e Aeronáutica por ser a força mais numerosa e detentora do poder letal. 

O Alto Comando do Exército, na atual composição que tem, é inteiramente legalista e profissional. Não existe disponibilidade para uma aventura como um golpe, mas não acho impossível, e acho essa a nova estratégia, a ideia da insurreição. A iniciativa não seria de maneira nenhuma das Forças Armadas, mas de movimentos populares, patriotas ou similares, que estariam disponíveis para ações como vimos em Brasília. Tumulto generalizado, invasão de prédios, etc. Esse modelo já tinha acontecido no Ceará [na greve dos policiais], na Bolívia e foi o modelo do Capitólio. Insurreição como forma de legitimizar, ou popularizar, uma bandeira da extrema direita. 

Um veículo queima em um posto de gasolina após confrontos entre a tropa de choque e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, em protesto contra a prisão de uma liderança indígena em Brasília, em 12 de dezembro. Foto: Evaristo Sá/AFP
Um veículo queima em um posto de gasolina após confrontos entre a tropa de choque da PM e apoiadores de Jair Bolsonaro, em protesto contra a prisão de uma liderança indígena em Brasília, em 12 de dezembro. Foto: Evaristo Sá/AFP

As falas de Bolsonaro e de Mourão são elementos fundamentais dessa ideia de insurreição, e o modelo por trás é a Marcha sobre Roma (quando os fascistas tomaram o poder na Itália com Mussolini em 1922), que mostra o caráter populista do fascismo. Há possibilidade real de insurreição.

Headline – E o Exército pode ser empregado para reprimir essa insurreição?

Teixeira da Silva – Se a força de alguma forma vier a ser chamada para reprimir, entre aspas, esses patriotas, isso vai quebrar a coesão que já está muito frágil dentro das Forças Armadas. E poderemos assistir o que seria o maior pânico do Alto Comando, que seria o movimentos de quebra de hierarquia e desobediência. Esse é o ponto central. Hoje o que mais se fala dentro do Exército é sobre a manutenção da hierarquia e da disciplina, e está se fazendo uma força intensa para se manter isso. 

A chegada do general do Gonçalves Dias está sendo saudada como muito boa. O Gonçalves Dias indo para o GSI, dentro do Palácio, e que tem o controle das informações, como a Abin, ele conhece perfeitamente o valor da disciplina e da hierarquia. E isso acalma o Alto Comando de certa forma. Agora, aquilo que talvez a gente pudesse chamar inapropriadamente de morismo, o sentimento pro juiz Moro nas Forças Armadas, parece que não foi abalado por tudo o que aconteceu.

Headline – É um fenômeno interessante essa ligação do Moro com as Forças Armadas. 

Teixeira da Silva – É uma relação umbilical. Ele foi muito homenageado em todo o processo da Lava Jato, visitou todas as unidades militares do Brasil, recebeu todas as comendas, foi a todos os jantares de honra. E eles, os militares, não estão vendo o que aconteceu na Lava Jato, é como se não tivesse acontecido a Vaza Jato. Eles continuam, essa camada média, achando que Lula é ladrão. O que não é exatamente a causa do atual mal estar. Ideologicamente, eles jamais aceitaram a Nova República. Lula, Dilma ou Comissão Nacional da Verdade não são a causa do mal estar. Eles nunca aceitaram a Nova República nos termos que ela foi proposta. Para eles, Sarney, Itamar ou FHC são todos iguais ao Lula. 

Headline – Trata-se de um problema de formação?

Teixeira da Silva – Claro que é um problema de formação. Tudo que está sendo dado dentro das academias, das escolas militares, é uma reprodução permanente desse hábito militar, dessa cultura, de superioridade aos civis e de terem eles a capacidade de tutelar a nação. A ideologia da tutela funciona e é antiga no Brasil. Pelo menos desde o tenentismo, que está fazendo cem anos neste ano. Os militares desenvolveram uma ideologia de superioridade aos políticos e de responsabilidade paternal pela república. 

Headline – Esse vai ser um grande dilema do Lula 3, como militarizar novamente os militares? 

Teixeira da Silva – Não sei se o Lula, como sua imensa capacidade de negociação e jogo de cintura político advindo da vida sindical, está entendendo esse processo de radicalização à direita dessas pessoas e instituições. 

O presidente eleitoLuiz Inácio Lula da Silva na sessão de encerramento do grupo temático do governo de transição, em Brasília, em 13 de dezembro. Foto: Evaristo Sá/AFP
Luiz Inácio Lula da Silva na sessão de encerramento do grupo temático do governo de transição, em Brasília, em 13 de dezembro. Foto: Evaristo Sá/AFP

Headline – Radicalização de instituições como as Forças Armadas?

Teixeira da Silva – Como a Polícia Rodoviária Federal, como a Polícia Federal, como as Polícias Militares, como parcela das Forças Armadas. E como parcelas da magistratura. Pequenos atos, como uma juíza negar uma causa ao Chico Buarque porque ela não sabe se ele era ou não o autor de uma música, não é uma manifestação de Justiça, mas de opinião ideológica. 

Várias instituições estão se radicalizando nesse processo. E vários detentores desses cargos públicos esqueceram atributos clássicos da burocracia, como a impessoalidade. O cargo não é deles, é do Estado. Não sei se o Lula está entendendo esse grau de radicalização da sociedade. Se ele está entendendo, há possibilidade de agir como negociador? O processo de radicalização dessas pessoas [das forças policiais e militares] é o que elas conhecem, sobretudo a partir de binômios simples, amigo-inimigo, patriota-traidor, corrupto-honesto. Para eles, o mundo é todo formado por pares binários simples, que não comporta a negociação, o diálogo típico da democracia. Se eles aceitassem isso, não seriam de extrema direita. Acho que o Lula não entendeu isso suficientemente bem.

Headline – É preciso punir?

Teixeira da Silva – Essas pessoas só entendem a linguagem da força, não há como convertê-las nesse sentido. Elas precisam ficar ameaçadas de perder a aposentadoria, a patente, o cargo. As sociedades estão condenadas a conviver com grupos minoritários radicais, de extrema direita. Veja o que aconteceu na Alemanha na semana passada. Nos EUA, continuam a contestar a legitimidade de Biden. Devemos tirar lições desses episódios em vez de imaginar mais uma vez que somos o país da ternura e da solidariedade, que no fundo somos todos brasileiros e vamos nos congraçar num abraço. A ilusão da cordialidade brasileira, nesse caso, vai fazer muito mal. Temos uma extrema direita organizada, poderosa, que teve uma votação enorme. Trata-se de novidade para essa mística brasileira da cordialidade.

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