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Exército omitiu violência sexual de soldados brasileiros no Haiti

Andrei Netto, Deborah Berlinck, Mario Camera

Investigação de universidade britânica revela que soldados abusaram, engravidaram e abandonaram mulheres e bebês durante a missão de paz da ONU liderada pelo Brasil no país.

Haiti3 de fev. de 209 min de leitura
Haiti3 de fev. de 209 min de leitura

Sexo, em troca de comida. Sexo, por US$ 5 ou US$ 20. Sexo com a promessa de amor e de uma vida melhor no Brasil. Sexo, arrancado num estupro. Militares brasileiros exploraram e abusaram sexualmente de mulheres haitianas pobres ao longo dos 13 anos em que o Brasil comandou Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti – Minustah, na sigla em francês. 

Partiram definitivamente da ilha caribenha em outubro de 2017, quando a ONU encerrou a missão no país, deixando para trás um número ainda desconhecido de filhos, mulheres desamparadas e um rastro de histórias de exploração e violência até aqui nunca esclarecidas pela ONU.  

Crimes e abusos cometidos por soldados brasileiros, jamais foram investigados pelos oito generais brasileiros que comandaram as tropas, entre os quais três atuais ministros do governo de Jair Bolsonaro: Augusto Heleno Ribeiro Pereira (Gabinete de Segurança Institucional), Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Floriano Peixoto Vieira Neto (secretário-executivo Secretaria-Geral da Presidência).

Dois estudos indicam que o número de casos de exploração e abuso sexual no Haiti por parte dos “capacetes azuis” – como são chamados os soldados das forças multinacionais que agem sob o mandato da ONU -- é maior do que se imagina. 

Nos dois estudos, as denúncias contra soldados brasileiros aparece em destaque. Um foi liderado por Sabine Lee, historiadora da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, junto com Susan Bartels, médica da Universidade de Queens (Canadá) e integrante da Iniciativa Humanitária da Universidade de Harvard (EUA). 

Lee e Bartels começaram a investigar em 2016 denúncias de que dezenas de crianças haitianas nasceram das relações com soldados e civis da ONU – também conhecidas como  “bebês da paz” (Peace babies), numa alusão às missões de paz da ONU. E a maior parte foi abandonada pelos soldados. 

Soldados Brasileiros patrulham em Porto Príncipe.
Segundo um dos estudos, somente 4 entre 42 mulheres denunciaram os casos de abuso.

Sua equipe foi a todas as regiões do Haiti onde havia bases da ONU e fez a mesma pergunta para homens e mulheres locais: como era a relação com soldados e civis da ONU? Não fizeram nenhuma pergunta sobre abuso ou exploração sexual, de propósito, para não influenciar nas respostas. Das 2200 histórias que coletaram em conversas com 2100 pessoas, 265 histórias mencionavam “bebês da paz”. 

Quando os pesquisadores perguntaram às mulheres se conheciam a nacionalidade do soldado, Brasil e Uruguai foram os mais citados. 

“O maior número foi [de militares do] Uruguai. E o segundo maior foi Brasil. Há uma grande distância entre esses dois e outras nacionalidades que forneceram tropas para a ONU)”, diz Lee. 

O outro estudo é do ativista de direitos humanos independente, o americano Mark Snyder. O americano identificou mais de 80 casos de exploração e abuso sexual por parte de tropas da ONU. Ele  entrevistou 42 mulheres, e metade delas disse que foi explorada ou abusada por soldados brasileiros. “Quanto mais remota era a localização das bases das tropas, maior era o número de violações”, disse Snyder. 

Estupro sob o olhar dos outros 

Mais da metade das mulheres entrevistadas por Mark Snyder -- 24 -- disseram ter sido estupradas por militares ou policiais da ONU (UNPOL). Destas, 15 tiveram filho.  Num relatório preliminar , publicado em janeiro de 2017, Mark descreve como as vítimas foram atraídas para o estupro:  

“Estes 24 incidentes incluíram, mas não se limitaram a:  estupro de uma criança, estupro depois de ser atraída para um local com a promessa de distribuição de recursos, estupro em veículos da ONU em pontos móveis da Minustah, por vários perpetradores, estupro enquanto outros funcionários da ONU permaneciam como vigias, estupro sob a mira de uma arma, estupro na base de Minustah, estupro depois de oferecerem transporte em uma estrada remota, estupro durante uma invasão domiciliar por múltiplos capacetes azuis e várias vítimas, na mesma localização e período de tempo,  sendo estupradas possivelmente pelo mesmo agressor com uma descrição física única e mesma maneira de atrair a vítima” 

Apenas 4 das 42 mulheres denunciaram os casos à ONU – o que sugere, segundo ele, que a magnitude real do problema é “alarmante”. Ele calcula que o número de casos envolvendo soldados brasileiros e de outras nacionalidades,  chegue a quase 600

Base da Minustah em Porto Príncipe
Mulher passa em frente da base da Minustah em Porto Príncipe.(Photo: Carolina Arantes)

“Se você for para os locais onde funcionavam as bases da Minustah e perguntar onde estão os ‘bebês Minustah’, vai ouvir muitas histórias”, diz o pesquisador. 

O nome do Brasil não aparece em nenhuma estatística oficial da ONU sobre denúncias de exploração e abuso sexual no Haiti, apesar de o país ter contribuído com o maior número de soldados da força multinacional: 37.500 militares.  De 2007 a 2018, a ONU recebeu 115 denúncias de exploração e abuso sexual. Só à partir de 2015, com a reputação abalada por uma série de escândalos, a organização passou a publicar a nacionalidade das pessoas acusadas. Oito países estão na lista das violações sexuais no Haiti: Canadá, Ruanda, Burkina Faso, República dos Camarões, Bangladesh e Benin. O  Brasil não consta. 

As estatísticas da ONU estão longe da realidade. Só Sabine Lee coletou 265 denúncias de mulheres que tiveram filho em consequência  de abuso e exploração. Mark Snyder identificou 42 vítimas. 

HEADLINE desvenda aqui histórias que nunca foram investigadas pela ONU, como a saga de Monique Louis, que alega ter sido estuprada na praia por um militar brasileiro e  pariu um “petit Minustah” -- um filho mestiço. HEADLINE revela também como tropas do Brasil e de vários países alimentaram uma rede de exploração e prostituição de mulheres vivendo na miséria. 

Numa reportagem publicada em abril de 2017, a agência americana de notícias AP revela, entre outras, a história de Janila Jean, que alega ter sido estuprada aos 16 anos, virgem, por um capacete azul brasileiro. O militar a atraiu para a base da ONU em Jacmel, colocou uma arma na sua cabeça e a violentou. Janila teve uma filha e disse que chora frequentemente. "Alguns dias, imagino estrangular minha filha até a morte", disse Janila à AP.  

São histórias conhecidas e faladas por muitos haitianos, mas que quase nunca chegam à ONU. E quando chegam, esbarraram em segredos de investigação, na falta de transparência, ou acobertamento dos países que contribuíram com as tropas. 

Vista grossa do comando

O comando brasileiro da Minustah sabia da gravidade da situação, pelo menos desde 2007, quando descobriu-se que 134 militares da Sri Lanka exploraram e abusaram sexualmente “de, pelo menos,  9 crianças” -- na sua maioria, pobres, que haviam perdido os pais ou tinham sido abandonadas por eles. Entre elas, dois meninos, de 8 e 10 anos. 

“Os casos não são isolados. Não se trata de uma, duas ou três crianças. Estamos falando de um grupo de crianças”

Um relatório confidencial da investigação interna da ONU, de 19 de novembro de 2007 (leia a íntegra aqui), concluiu que “os atos de exploração e abuso sexual eram frequentes, aconteciam geralmente à noite em praticamente todos os locais onde militares de Sri Lanka foram destacados, incluindo: carros militares, pontos militares em Porto Príncipe (capital) e bases militares de Sri Lanka em todo o Haiti. Crianças recebiam em troca de sexo pequenas quantidades de dinheiro (em média, entre US$ 3 a US$ 5), comida ou, às vezes, celulares”. 

O general Carlos Alberto Santos Cruz, atual ministro da Secretaria de Governo, que estava comando das tropas da ONU no Haiti nesta época, é citado no relatório. Em janeiro de 2007, o então representante especial do Secretário-Geral da ONU, Edmond Mulet, enviou um comunicado oficial ao general anunciando que a ONU decidiu exigir de todos os comandantes das bases da Minustah um relatório por mês, assinado, descrevendo todas as medidas tomadas para combater abusos sexuais. A carta ao general brasileiro começa assim: “Como você está ciente, as políticas da organização conferem uma responsabilidade especial aos comandantes militares para prevenir a exploração e o abuso sexual…”

Nada disso foi levado à sério. Os relatórios dos comandantes da Sri Lanka, com exceção do primeiro, não eram sequer assinados. Os investigadores escreveram: “Não há nenhuma indicação de que o Comandante da Força (General Carlos Alberto Cruz), os funcionários da Unidade de Conduta e Disciplina, a Polícia Militar ou quaisquer outros atores com responsabilidade pelas explorações e abusos sexuais na Minustah verificaram a precisão das informações apresentadas pelos comandantes da Sri Lanka”. 

Por conta do escândalo, 114 soldados da Sri Lanka foram repatriados. A ONU insistiu na sua política de “tolerância zero” para violações.

Almirante Ademir Sobrinho
Almirante Sobrinho afirma que não há caso de violência contra soldados brasileiros.

“Os casos não são isolados. O que eu posso extrair dos dados hoje é: este é um problema significativo. Se não fosse, a população local não teria criado um nome (para as crianças). Não se trata de uma, duas ou três crianças. Estamos falando de um grupo de crianças”, Sabine Lee. 

Headline foi ao Haiti entrevistar as supostas vítimas e constatou que, além de denúncias de abuso, como estupro, soldados brasileiros estimularam a criação de uma rede de prostituição de garotas pobres. Numa praia de Porto Príncipe, onde tropas se divertiam nos dias de folgas,  alguns capacetes azuis brasileiros eram conhecidos por chegar na praia já pedindo mulher “sexy”. Num dos países mais pobres do mundo onde a miséria salta aos olhos, militares brasileiros desembarcavam nas praias exibindo fartura: caixa de som, música, bebida e muita comida. Rapidamente, surgiu um comércio do sexo. Do dono do barco de passeio ao vendedor de peixe, todo mundo faturou com a exploração sexual das meninas.  

O Ministério da Defesa afirmou que a conduta dos militares brasileiros é considerada exemplar internacionalmente e que todos recebem instruções específicas sobre o tema antes de participar em operações brasileiras no exterior. O almirante Ademir Sobrinho, então Chefe de Estado Maior Conjunto das Forças Armadas do Brasil, declarou à AP, numa conferência em Londres, em 2017,  que o Brasil não tinha casos de estupro, abuso sexual ou exploração sexual no Haiti.Sexo, em troca de comida. Sexo, por US$ 5 ou US$ 20. 


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