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Escolas são vítimas do ódio e de mensagens da extrema direita

Danilo Rocha Lima, da Headline | Paris, França

Ataques aumentaram desde o segundo semestre de 2022. Segundo estudos, atos são orquestrados por cooptadores de extrema direita em redes sociais e jogos virtuais

8 de abr. de 2310 min de leitura
8 de abr. de 2310 min de leitura


As tragédias nas escolas do país já não são mais fatos isolados e estão conectadas com o cenário político brasileiro. Elas são frutos da escalada do ultraconservadorismo e do extremismo de direita no Brasil. Somam-se a isso a falta de políticas públicas para enfrentar o problema, a banalização do ódio, o acesso facilitado às armas e a negligência das redes sociais, e teremos o coquetel pronto para um contexto macabro. Contexto em que as autoridades e estudiosos já se perguntam quando e onde  acontecerá o próximo massacre. 

Segundo um estudo em andamento do IdEA (Instituto de Estudos Avançados) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), entre 2002 e abril deste ano, 24 escolas foram atacadas. Essa quantidade já é alarmante, mas o que chama a atenção é a frequência e a intensidade desses atos. Somente entre o segundo semestre de 2022 e abril deste ano foram 10 ataques. Os últimos aconteceram em São Paulo e Blumenau (SC).  

“A dinâmica da nossa sociedade explica em parte esse fenômeno. O discurso de ódio foi banalizado e a polarização, em grande parte por causa da política, exacerbou a violência. A gente identifica esse ódio nesses ataques. Em 100% dos casos, há um discurso misógino. Além disso, o Brasil não tem política pública para tratar esse fenômeno”, adverte Cleo Garcia, advogada e mestranda que liderou o estudo. 

Outro relatório produzido por um grupo de 12 profissionais de diversas áreas e entregue ao então gabinete de transição do atual governo Lula aponta que, no Brasil, o fenômeno da violência às escolas não pode ser abordado sem levar em consideração o que fundamenta esses ataques: ideologias movidas pelo racismo contra negros e indígenas, o discurso de ódio contra pessoas LGBTQIA+ e a misoginia.

O relatório intitulado “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, foi elaborado pelo Grupo Temático de Educação do Gabinete de Transição. 

O documento indica que os jovens, de entre 10 e 25 anos, são expostos com frequência a conteúdos difundidos em aplicativos de mensagens como Telegram, WhatsApp, Discord, chats e fóruns de jogos, além das redes sociais. Nesses ambientes, a ideia da supremacia branca e masculina é um elemento que une o discurso .

“Nesses grupos onde há cooptação, eles se apegam até mesmo à lógica da raça pura, que prega o nazismo. Isso é alimento para o extremismo e essas bandeiras estão presentes nesses ataques”, adverte Catarina de Almeida Santos, professora da UNB e uma das responsáveis pelo relatório.

Catarina ressalta que os jogos eletrônicos não devem ser culpados diretamente pelos ataques às escolas, mas sim visto com o ferramenta para o ódio. “Os jogos são os espaços utilizados pelo cooptadores para recrutar esses jovens. Nem todo jogador vai se tornar um atirador contra escolas. Falta vigilância desses espaços”. 

Vigília diante do Centro de Educação Infantil Cantinho do Bom Pastor, onde quatro crianças foram mortas em ataque por jovem de 25 anos. Foto: Anderson Coelho/AFP
Vigília diante do Centro de Educação Infantil Cantinho do Bom Pastor, onde quatro crianças foram mortas em ataque por jovem de 25 anos. Foto: Anderson Coelho/AFP

“O meio social reforça muito esse sentimento. O discurso de ódio está sendo banalizado e se tornando pop. Nossos jovens crescem achando que é sempre culpa do outro, um problema é sempre culpa de uma minoria. Essa responsabilização de terceiros sempre existiu, mas a gente percebe um agravamento nos últimos anos, uma pauta que empurra nossos jovens ao ressentimento extremo, e que acaba desencadeando essa barbárie” analisa o psicólogo clínico e escolar André Maturano. 

Bullying não justifica violência

Segundo a advogada e mestranda da Faculdade de Educação da Unicamp, relacionar sumariamente os ataques ao bullying nas escolas pode esconder um problema ainda mais complexo.

“Esses adolescentes autores desses ataques vivem em situação de sofrimento, sim, causado pela exclusão e outros tipos de violência na rua, na família ou na escola. Eles vivem um certo isolamento social. Ao frequentarem chats online de jogos ou grupos de conversa em redes sociais, eles se sentem acolhidos e se tornam presa fácil para serem influenciados via discursos se ódio”, analisa Cleo Garcia. 

De acordo com o estudo, a faixa etária dos jovens que cometeram esses ataques se situa entre os 10 e os 25 anos. A maioria dos jovens se identificam como homens brancos, heterossexuais. “Porém, esses jovens não se escondem mais em fóruns fechados ou perfis anônimos da deep web. Eles são cooptados e incitados por meio de publicações escabrosas abertas, nas redes sociais. A falta de regulação e de responsabilização dessas plataformas nesse debate precisa ser discutida urgentemente”, salienta Cleo Garcia. 

O Congresso e a banalização do ódio

Embora o discurso de ódio entre os jovens use as ferramentas virtuais para se propagar, outro vetor bem mais notório deve ser levado em conta, de acordo com Catarina de Almeida: o Congresso brasileiro.

“Essa instituição é o lugar da produção de leis e da proteção da vida por meio da diversidade. Ora, o que nós vemos é a intolerância e a produção do discurso de ódio. E esses deputados e senadores amplificam por muitas vezes o extremismo e legitimam certas ações”, lamenta Catarina.

Segundo estudiosos, ações como grupos de pais nas portas das escolas ameaçando professores, discursos de vereadores e deputados contra o ensino básico em nome da “escola sem partido” legitimam o ambiente escolar como alvo fácil para a expressão do terror. 

Moradores rezam diante da escola Cantinho do Bom Pastor, em Blumenau (SC). Foto: Anderson Coelho

Apesar dos ataques disseminarem o caos em escolas e comunidades, episódios de violência às escolas brasileiras não podem ser classificados como terrorismo. Seguindo definições internacionais, o terrorismo poderia ser essencialmente explicado se os atos de terror tivessem motivação política (Resolução 49/60 da Assembleia Geral da ONU).

“Ao focalizar exclusivamente a prevenção de atentados, exclui-se a possibilidade de prevenir que adolescentes sejam cooptados por grupos e discursos de extrema-direita que não necessariamente incentivam o cometimento de atos terroristas”, diz o documento.

Ainda segundo o relatório, “vale ressaltar, no entanto, que mesmo que não haja o incentivo aberto a cometer violência extremista por parte de alguns desses grupos, eles fazem parte de um ecossistema que tem participação ativa na difusão de conteúdo nazista, fascista, propagação de discurso de ódio contra minorias e outras condutas caracterizadas como crimes de ódio”, conclui o estudo. 

O acesso facilitado às armas também é um elemento que contribui para a disseminação do terror contra às escolas. Dos 22 ataques cometidos até o mês de março deste ano, 12 foram com armas de fogo: 6 foram cometidos por adolescentes que tinham armas em casa. 4 compraram armamentos de terceiros e apenas 2 foram praticados com armas de origem desconhecida. 

Embora exista o debate sobre as múltiplas causas que levam a violência às escolas, o psicólogo André Maturano adverte que as autoridades brasileiras parecem não se atentar para a urgência do problema.

“Precisamos parar de passar séculos em debates ou trabalhando conceitos, abordando esse problema de maneira superficial. Precisamos focar e chamar isso de nazismo, de crise de supremacia branca… A gente precisa focar no objeto para poder ocupar os espaços onde esses jovens estão sendo cooptados, para que os pais saibam o que os filhos estão jogando e que os educadores sejam formados para a vigilância de comportamentos estranhos”, diz. 

Mas por que atacar escolas? 

“Porque, por natureza, são espaços onde há aglomeração e diversidade, por mais que alguns jovens sofram processos de exclusão. A diversidade em todos os sentidos está presente ali, naquele espaço de troca de experiência, de vivência, onde se constrói a tolerância ao estar perto do outro. E o extremismo combate justamente isso”, responde Catarina de Almeida, professora da UNB.

Para Cleo Garcia, atacar a escola ganha uma conotação de troféu para seus perpetradores. “Porque ao atacar uma escola, o agressor sabe que será visto e reconhecido geralmente entre os pares com quem ele viveu algum evento ou desavença. Na escola, aquele agressor que viveu algum sofrimento ali dentro ou na rua, tem certeza de que vai ter o seu momento de glória”, aponta a advogada e mestranda da Unicamp. 

E esse reconhecimento no mundo virtual obedece até mesmo a códigos específicos. Numa espécie de glorificação dos criminosos, a palavra em latim sanctus é usada em fóruns online e grupos de redes sociais para elevar o nome de agressores.

O ataque de Columbine, nos Estados Unidos, ocorrido em abril de 1999, com 13 mortos, é usado com recorrência como inspiração nos ataques brasileiros, num problema que já é considerado endêmico por alguns estudiosos. A proximidade com as datas aumenta ainda mais o alerta para novas tentativas de disseminação do ódio em escolas.

Parentes de alunos da escola Praia de Coqueiral esperam nos arredores por notícias depois que um ataque a duas escolas deixou três mortos e 13 feridos. Foto: Kadija Fernandes / AFP

Associada à inação das redes sociais diante dos fatos, a cobertura da imprensa desses episódios de terror precisa ser questionada, de acordo com profissionais que trabalharam nos relatórios mencionados. A descrição do crime e a citação dos nomes dos agressores é usada nos grupos de cooptação para fazer dos criminosos os seus santos. Nos últimos dias, diversos meios da imprensa brasileira decidiram justamente mudar essa cobertura, com o intuito de evitar o efeito de contágio de tais ataques. 

O impacto psicológico

Estudos feitos nos Estados Unidos dão conta de casos de estresse pós-traumático, distúrbios e transtornos mentais entre as vítimas, parentes próximos e até membros das comunidades nos arredores do estabelecimento.

No Brasil, não é muito diferente. O psicólogo André Maturano aponta que eventos como os últimos massacres registrados provocam crises, surtos psicóticos, e distúrbios até mesmo afetivos e cognitivos em crianças, professores e profissionais envolvidos com a escola.

De acordo com o psicólogo, reinserir essas pessoas no mesmo ambiente dessas tragédias não ajuda a acelerar a resolução de traumas. “Pensamos sempre na prevenção. Mas o posvenção não deve ser negligenciado. As consequências de uma tragédia podem aparecer somente meses depois. Antes de mais nada, essas vítimas precisam de um acompanhamento individual terapêutico. Depois que essa pessoa passa pelo estágio do evento traumático, podemos falar de outros processos, como a reinserção em grupos terapêuticos. Trata-se de um processo lento e cuidadoso", lembra. 

O que o governo prevê

O governo federal liberou 150 milhões de reais para fortalecer a ronda escolar e prometeu a criação de um grupo de 50 profissionais da Secretaria Nacional de Segurança Pública que vão monitorar ameaças e mensagens de ódio na Internet.

Além disso, um grupo interministerial (Educação, Saúde, Justiça, Direitos Humanos e Secretaria Geral) foi formado para desenvolver uma política nacional sobre o tema. A proposta, ainda que tardia, parece seguir as diretrizes sugeridas por profissionais da área. “Não se pode responsabilizar a escola para resolver essa questão. As nossas escolas são vítimas. E, como vítimas, elas precisam ser ouvidas. Essa é uma responsabilidade do Estado brasileiro e a escola como parte desse Estado, também é parte dessa solução”, orienta a educadora Catarina de Almeida. 

“O contexto é tão grave que, no fundo, a gente não pode mais prever ações de prevenção. Todos nós precisamos pensar em ações sobre como remediar o problema. Mas nossa sociedade é extremamente resistente às mudanças. Por isso, é preciso levar a sério o debate sobre regulação de redes sociais e o controle sobre a divulgação de mensagens de ódio nesses meios”, adverte o psicólogo André Maturano. 

“Fazer policiamento externo é apenas uma solução imediata. Para resolver o problema, é preciso uma política pública efetiva, além de um trabalho de inteligência sobre os fóruns e grupos de Internet e nas redes sociais. Além disso, precisamos capacitar nossos professores, para tratarem com casos de distúrbio nas escolas. E é necessário haver um olhar de assistência social, já que muitos adolescentes de escolas públicas saem da precariedade ou de ambientes familiares turbulentos”, aponta a advogada e pesquisadora Cleo Garcia. 

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