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Dona Beijinha, a ex-prostituta de 94 anos do sertão pernambucano

Aos 94 anos, ela faz parte do grupo de 26 anciãos abandonados ou sem família que vivem e recebem atenção especial no abrigo.

Por Meus Sertões
23 de jan. de 206 min de leitura
Por Meus Sertões23 de jan. de 206 min de leitura
Mulher da Vida, minha Irmã (...) Flor sombria, sementeira espinhal  gerada nos viveiros da miséria, da pobreza e do abandono, enraizada em todos os quadrantes da Terra. “Mulher da Vida” - Cora Coralina

Maria José Bernardina de Siqueira, uma menina mirrada e espevitada, ganhou da mãe o apelido de Beijinha, referência ao ato de beijar algo sagrado. Foi com esse nome carinhoso que Maria ganhou fama nos cabarés de São Bento do Una - cidade onde nasceu e se criou - Jupi, Arcoverde, Garanhuns e Recife, em Pernambuco. 

Prostituta desde o início da adolescência, Beijinha só deixou de ser profissional do sexo em 2009, quando foi levada para o Lar dos Idosos Domus Christi (Casa de Cristo, em português), uma das obras de assistência social criada pelo padre Airton Freire. 

Eu nunca trabalhei, meu filho. Eu digo a verdade, tenha raiva de mim quem quiser. Eu vivia de cabaré em cabaré. Eu era bem novinha, deste tamanhinho (faz gesto para mostrar que era bem pequena). Nem sei quantos anos eu tinha (funcionários do abrigo dizem 13). Eu vivia trepando na rola dos cabras” 

– diz, arrancando gargalhadas de funcionários do abrigo.

Beijinha tem cerca de 1,50 metro. Vaidosa, não dispensa batom vermelho. As roupas são limpas e bem conservadas. Ao ser elogiada pela elegância, dispara:

Boto batom e troco de roupa para ver se arrumo namorado. Se arrumar, eu ainda trepo”. 

Dessa vez, ela mesma ri. 

Embora tente ‘glamurizar’ a prostituição e conte histórias engraçadas e picantes, há muita tristeza em seu semblante. Sem querer dar detalhes, conta que foi parar no primeiro cabaré iludida por uns homens que a “comeram”. No instante seguinte, muda de assunto: fala que gostava de dançar, que era bem paga e podia dar presentes para os pais, Delmiro Bernardino Siqueira e Emília.

É preciso crescer esta noite inteira sem pararDe crescer e quererA puta que não sabeO gosto do desejo do meninoO gosto meninoQue nem o meninoSabe, e quer saber, querendo a puta. “A Puta” – Carlos Drummond de Andrade

Iniciada sexualmente e abusada muito cedo, Beijinha, com o tempo, passou a gostar de tirar a virgindade de adolescentes. Ela revela que tomava banho, perfumava-se – “sempre fui limpa” – e ia para o mato com os meninos novinhos. Carregava consigo um lençol para forrar o chão.

Eu chamava e ele vinha com o prego durinho. Aí botava ele por cima d’eu. Pegava a trouxinha dele, botava no buraco do jundiá e pegava a peneirar (rebolar) na cabeça da trouxa dele. Ele dizia: ‘Ô Beijinha, como é bom!’. Ele era uma criança, quase que do meu tamanho”

Jundiá, nome de um peixe de rio carnudo e saboroso, é como a idosa chama até hoje o órgão sexual feminino. Beijinha não gosta de usar “periquito” ou “periquita” como a maioria de suas conterrâneas fala. Diz que são nomes feios. 

Como prostituta se vangloria por nunca ter engravidado e por “colocar galhas” em muita gente. Refuta, no entanto, a possibilidade de ter sofrido uma traição.

“Mulher nenhuma botou galha em mim. Era eu quem botava nelas. Eu comia os machos dela tudinho. Eles diziam que não tinha mulher mió que eu: “Eita bicha do tabaco bom da bobônica (adjetivo usado para expressar surpresa ou satisfação)” – acrescenta.

Marlene, uma das funcionárias do abrigo, ressalta a popularidade da anciã entre os homens. Conta que eles gostam dela até hoje. É raro abrigar um idoso que não a conheça e que não tenha histórias sobre ela.

Meu Guriabá  
Veio da Bahia 
Ele bebe muito
Sem tê friguizia (...)
Meu Guriabá
É de nosso estado
Ele bebe muito
Só compra fiado.
O reisado alagoano – Théo Brandão

Nem tudo foi prazer e alegria no modo de vida que Beijinha levou. Mais de uma vez foi espancada e agredida. Seu principal algoz foi João ‘Guriabá’, um cliente com quem teve um relacionamento. No folclore nordestino, o reisado, auto realizado entre o Natal e o Dia de Reis, tem personagens que fazem parte de entremeios (pequenas e breves representações dramáticas). Entre 1910 e 1930, um desses dramas tinha como figura principal um ser que tanto poderia ser homem como bicho, que bebia muito e fazia o povo chorar.

Ao descobrir uma das muitas traições de Beijinha, Guriabá deu um murro tão forte no rosto dela que a dentadura, feita com dentes de ouro, se espatifou:

“Eu tinha a chapa que era a coisa mais linda do mundo. Só tinha ouro, ouro, ouro. Foi um presente de um homem com quem eu ‘quengava’. Aí eu botei uma galha no cabra (João) com um menino. Ele me deu um soco tão forte, que foi caco de chapa para todo canto. Ele também quebrou meu braço” – diz, mostrando as marcas que ficaram até hoje. 

Em outra ocasião, ele a atacou com uma faca, ferindo-a no órgão sexual.

Eu botava muita galha nele. Era muita ponta. Aí ele judiava de mim” – conta.

Apesar dos maus momentos, Beijinha insiste que não há vida melhor do que a de cabaré. E causa surpresa aos visitantes quando revela que se prostituiu até os 84 anos. Até hoje os funcionários do abrigo dizem que ficam atentos aos passos da anciã, pois se deixar, ela ainda sai para procurar companhia masculina. 

Antes, todos os caminhos iam; Agora todos os caminhos vêm (...) “Envelhecer” – Mário Quintana

Beijinha faz o que pode para esconder a tristeza. Brinca, fala coisas engraçadas, mostra a diferença de rebolar nas pistas de dança e nos quartos dos cabarés, arranca risadas. Chega um momento, porém, que a tristeza se liberta. 

Começa com um lamento pelas coisas que não fez - aprender a ler e escrever, por exemplo. Piora ao falar da saúde precária, incluindo problemas de visão, dores nas costas e por baixo do peito. E deságua em choro ao se dar conta que mesmo cercada de gente está só:

Morreu tudinho: pai, mãe, avô, vó, irmão. Se tivesse minha família, eu não estava aqui. Mãe teve quatro filhos, duas mulheres e dois homens. Os meninos morreram, só ficou eu e Jardelina. Ela morreu aqui (no abrigo). Era minha irmã, minha anjinha. Eu não tenho mais ninguém”.