Conecte-se

Sociedade

#SAÚDE

Congelamento de óvulos não é garantia de gravidez no futuro

Helena Bertho, da Headline | São Paulo

Mulheres estão congelando óvulos cada vez mais jovens, com expectativa de preservação da fertilidade. Mas procedimento não garante gestação futura

1 de mai. de 239 min de leitura
1 de mai. de 239 min de leitura

“Você não congela carne estragada, né?”, foi o que a psicanalista Melissa Barbosa ouviu de um ginecologista que explicava para ela porque precisava congelar seus óvulos urgentemente. “Eu tinha 34 anos, ele disse que eu estava no limite para congelar e contou que se recusou a congelar os óvulos de uma mulher de 40 anos”, lembra. Nesta idade, ela estava chegando no que os médicos têm considerado como uma linha limite de idade para quem quer gestar: depois dos 35, é como se a fertilidade desaparecesse. 

Diversas pessoas ouvidas pela reportagem contaram histórias que revelam uma pressão dos profissionais de saúde para realizarem o congelamento de óvulos. Todas, com menos de 35 anos, receberam a indicação médica para congelarem seus óvulos “antes que fosse tarde demais”, na maioria das vezes sem sequer ter perguntado sobre o procedimento. 

Os dados mostram que, de fato, estão cada vez mais jovens as que decidem fazer congelamento. De 2021 para 2022, a quantidade de procedimentos de coleta de óvulos para congelamento realizados em mulheres de menos de 35 anos cresceu 10%, enquanto entre as com idade acima dessa faixa, o número caiu 6%, apesar de ainda serem a maioria, segundo dados do Sistema Nacional de Produção de Embriões (Sisembrio).

Infografia sobre idade dos congelamentos de óvulos no Brasil

São muitos os fatores por trás da decisão de guardar os óvulos para o futuro. Em muitos casos, é uma decisão feita por motivo de saúde: ao iniciar um tratamento oncológico ou antes de fazer uma cirurgia que pode afetar os ovários, muitas mulheres decidem congelar para poder engravidar depois. Além desses casos, há diversas motivações pessoais que levam ao congelamento, indo desde a dúvida pela maternidade ou não, passando pela escolha de adiar uma gestação por questões profissionais e até a dificuldade em encontrar um(a) parceiro(a) com quem ter o filho. 

O congelamento entra, nesses cenários, como uma garantia de fertilidade num futuro onde a pessoa pode estar infértil. Algumas empresas, inclusive, começaram a oferecer o congelamento de óvulos para suas funcionárias como um benefício trabalhista, como expôs reportagem da Folha de São Paulo.

A questão é que essas decisões – e o suposto benefício – são baseados em um medo e em uma informação que são ambos problemáticos. O medo é o da infertilidade, mas ela não é um destino tão certo e tão breve como pregam. Além disso, o congelamento de óvulos não é realmente uma garantia de fertilidade, nem de que a pessoa vai poder gerar um filho no futuro. 

O que define a infertilidade? 

Renata Pachiel estava tentando engravidar sem sucesso havia oito meses, aos 31 anos, quando decidiu procurar uma médica e investigar se havia algo errado com sua saúde. “Antes de me pedir qualquer exame, ela me disse para procurar uma clínica de fertilização. Mas eu disse que não queria. Que queria só fazer os exames e ver se estava tudo bem”, conta. 

Ela fez então um check-up e descobriu que tinha endometriose profunda e, no retorno, ouviu da médica que “era infértil e não conseguiria engravidar naturalmente”. “Foi uma conversa muito difícil, sabe? O que eu mais queria era ser mãe”. A médica explicou que ela precisaria fazer uma cirurgia para tratar a endometriose e depois fazer uma fertilização in vitro (FIV) para engravidar. 

“E por eu já estar com quase 32 anos, falou que achava que eu devia fazer o congelamento dos óvulos”. Renata e o marido começaram então a pesquisar sobre a fertilização e o congelamento, mas descobriram que eram procedimentos caros. Só a coleta dos óvulos, com o medicamento, custa entre R$ 15 e R$ 20 mil. 

Conversando com uma prima que havia feito FIV duas vezes sem sucesso, Renata decidiu então deixar o plano da gravidez para mais tarde, enquanto guardava dinheiro e focou na cirurgia. Estava fazendo os exames pré-operatórios quando, em fevereiro deste ano, passou mal e descobriu que estava grávida.

Histórias como a de Renata mostram como a infertilidade pode ser diagnosticada sem ser um fato. Isso acontece porque a definição da infertilidade feminina é genérica e não tem critérios fisiológicos ligados a ela. Na Classificação Internacional de Doenças (CID) 11, a mais atual, ela é descrita como “doença do sistema reprodutor definida pela falha em conseguir uma gravidez clínica depois de 12 meses ou mais de relações sexuais regulares desprotegidas”. 

Já a masculina é definida como “desordem do sistema reprodutor caracteriza por disfuncionalidades na ejeção de sémen ou ausência anormal no nível mensurável de esperma no sêmen”. 

“Então a infertilidade feminina é definida pelo desejo. Se não realizar o desejo em 12 meses, é infértil. E o do homem faz referência a questões fisiológicas que podem ser medidas e observadas”, explica a pesquisadora Marian Bellamy, que realizou seu mestrado em Saúde Pública estudando exatamente a construção da infertilidade como uma doença e como isso se relaciona com o mercado de reprodução assistida.  

As médicas da família do coletivo feminista sexualidade e saúde Luiza Cadioli e Nathália Cardoso reforçam que é importante ter cuidado com a forma como se fala da infertilidade. “Existe esse discurso de que as pessoas são totalmente férteis, de que é uma garantia. E se coloca a infertilidade como uma ameaça cada vez mais precoce. Isso faz produzir uma doença”, afirma Luiza. O que leva, então, à necessidade de prevenção – que seria o congelamento de óvulos para a preservação da fertilidade.

A fertilidade não desaparece depois dos 35

Que a fertilidade diminui com o avanço da idade é um fato inquestionável. Assim como é comprovado que o envelhecimento dos óvulos aumenta os riscos para algumas condições genéticas, como a síndrome de down. O ponto que as médicas destacam é que isso não muda assim, drasticamente, após os 35 anos de idade. 

“Não funciona desse jeito, atravessa a linha dos 35 anos a natureza intrínseca do corpo da mulher muda. As alterações são graduais, elas acontecem aos poucos. E mesmo que as taxas acelerem depois de um certo ponto, não é um salto do fértil pro infértil. Essa obsessão com os 35 anos não é científica”, afirma Nathália Cardoso. 

Tanto que, analisando a atuação de clínicas de reprodução assistida e de órgãos internacionais de saúde, Marian Bellamy percebeu que a idade “de risco” estaria diminuindo. Ela percebeu a construção de um discurso que usa da classificação da infertilidade com doença para colocar mulheres com mais de 30 anos como grupo de risco potencial para essa doença e, assim, vender os procedimentos de congelamento de óvulos. Talvez você lembre da campanha "Trintou, Congelou", amplamente divulgada por uma clínica de reprodução em 2021.

“A infertilidade está no destino de toda pessoa que menstrua, mas a gente não sabe quando. Eu tenho recebido pacientes com 25 anos já pensando em congelar antes dos 30, porque estão ouvindo dizer que 30 é a idade que você tem bons óvulos”, conta Luiza Cadioli. “A infertilidade, ela é natural em algum momento. Não uma doença a ser combatida, uma coisa fora do normal”. 

Ela ainda explica que é preciso também entender que a idade é um dos fatores envolvidos na questão da fertilidade, outros como doenças e estilo de vida também influenciam e precisam ser levados em consideração na avaliação de se a mulher tem risco de infertilidade ou não.

Uma garantia não tão garantida assim

Usando da técnica de criopreservação, o congelamento mantém o óvulo jovem e permite que ele seja fecundado no futuro através da FIV para a implantação no útero para, possivelmente, resultar em uma gravidez. 

Como a mulher produz apenas um óvulo por mês, para fazer o congelamento ela precisa tomar hormônios que estimulam a produção de óvulos. Depois disso, é realizado um procedimento cirúrgico para retirar os gametas que serão congelados. 

E é importante ressaltar que o tratamento hormonal para estimulação da produção de óvulos tem riscos, como o de trombose, e efeitos colaterais. E a cirurgia para a retirada dos óvulos também apresenta riscos.

Além do custo do medicamento e do procedimento, que fica em torno de R$ 20 mil, ainda é preciso pagar uma taxa mensal para manter os óvulos congelados. Existem algumas clínicas que oferecem a possibilidade de que a mulher doe alguns óvulos, em troca de descontos. 

De fato, o congelamento permite sim a FIV no futuro e pode resultar em gravidez. No entanto, as médicas ouvidas criticam a forma como isso é passado para as mulheres, como se fosse uma garantia de gravidez no futuro, sem informar corretamente os riscos e efeitos colaterais do procedimento. 

“Congelar não é igual a poder ter um bebê a hora que quiser. Cada vez mais mulheres que nunca nem tentaram gestar, nunca nem se frustraram diante da impossibilidade de uma gestação, mulheres que nem tem o diagnóstico de infertilidade, não têm fator de risco, nem idade… Elas têm buscado o procedimento para se ter essa suposta garantia desse corpo potente. E isso também pode dar margem para frustrações pessoais e também para uma criação de neurose”, diz Nathália Cardoso. 

Existem já evidências científicas de que o óvulo congelado tem a mesma chance de sucesso para uma gestação que o óvulo fresco. Ou seja, uma mulher de 30 anos teria a mesma chance de engravidar via FIV aos 30 ou anos depois com seu óvulo que foi congelado quando tinha 30. Essa informação costuma ser passada em clínicas de fertilidade para as pacientes.

O que precisa ser frisado é que se trata da chance de sucesso, tanto para o óvulo fresco, quanto o congelado, em FIV. A taxa de sucesso para FIV é de 30 a 35%. A cada 100 procedimentos de fertilização, 30 a 35 resultam em uma gravidez. 

Ou seja, milhares de pessoas estão investindo dinheiro e assumindo riscos e efeitos colaterais ao passar pelo procedimento médico para congelar os óvulos para garantir que será possível engravidar no futuro, mas nada garante que essa gravidez acontecerá.

Infográfico sobre uso de óvulos congelados em 2022

Para se ter uma ideia, em 2022 foram descongelados 19.259 óvulos para uso próprio, que geraram 5.667 embriões. Desses, 1.617 foram implantados e o restante foi congelado. Dos embriões implantados, resultaram em 373 gestações. Apenas 23% dos embriões implantados viraram uma gravidez de fato, de acordo com dados do Sisembrio.

Para as médicas, a oferta do congelamento de óvulos como um benefício trabalhista é um problema, exatamente pela falta de garantia. “O mote é: ‘não se preocupe com isso agora, trabalhe mais e engravide quando quiser’. É um lobo em pele de cordeiro”, diz Luiza Cadioli, lembrando que esse adiamento da gestação pode resultar em não engravidar nunca. “Por que as empresas não oferecem licença paternidade? Ou apoio-creche?”

Headline procurou a Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, que não se posicionou.

#SAÚDE
MEDICINA
CIÊNCIA
MULHER