Conecte-se

#URUGUAI

Caso Marset: entenda o escândalo que sacode o Uruguai

GIRO LATINO

Além de gerar crise política em Montevidéu, trama envolvendo emissão de passaporte para narco foragido também deixa rastros na Bolívia, Brasil e até no assassinato de promotor paraguaio Marcelo Pecci

11 de nov. de 237 min de leitura
11 de nov. de 237 min de leitura

Não é todo dia que você vê o governo uruguaio, considerado um dos mais estáveis da vizinhança, em temporada de renúncias e escândalos. Mas foi o que aconteceu nos últimos dias: no espaço de menos de uma semana, pelo menos quatro nomes do alto escalão do poder em Montevidéu pediram para sair, entre eles os ministros do Interior e das Relações Exteriores. E tudo por causa de um passaporte. 

Quem caiu primeiro foi o chanceler Francisco Bustillo. Considerado um importante aliado do presidente Luis Lacalle Pou, ele entregou o cargo na quarta-feira passada (1º), no contexto da divulgação de uma série de áudios em que o agora ex-ministro aparece, supostamente, tentando ocultar informações a respeito da tramitação de documentos para o narcotraficante uruguaio foragido Sebastián Marset, o pivô de toda a crise atual. A saída de Bustillo aconteceu na sequência de depoimentos prestados no mesmo dia por sua antiga subordinada, a ex-vice-chanceler Carolina Ache. De acordo com o material divulgado e com as declarações dadas por ela ao Ministério Público, Bustillo teria ignorado alertas feitos anos atrás por membros do governo sobre a periculosidade de Marset. 

O coração da trama está na emissão de um passaporte para o narcotraficante, solicitado em outubro de 2021. Marset recebeu o documento no mês seguinte, enquanto ainda estava detido nos Emirados Árabes – justamente por tentar sair do país com um passaporte paraguaio falso. E aqui entra o ponto de divergência entre as autoridades que renunciaram: enquanto Bustillo nega ter sido possível saber quem realmente era Marset à época, Carolina Ache diz que conversas entre ela e Guillermo Maciel, o “número dois” do Ministério do Interior, já descreviam o homem detido como alguém “muito perigoso” e cuja liberação seria “algo terrível”. Ao lado do titular da pasta, Luis Alberto Heber, Maciel também renunciou na semana passada. 

Segundo a antiga funcionária, seriam exatamente essas as conversas que Bustillo teria tentado ocultar. Assim, evitaria acusações de omissão a respeito do passaporte emitido para um cidadão procurado não apenas por autoridades latino-americanas, mas também pela Interpol e pela agência antidrogas dos EUA, a DEA. Em outro áudio de novembro de 2022, supostamente gravado um mês antes da renúncia da própria Ache, seu então superior teria sugerido que ela “perdesse o celular” para evitar que as conversas sensíveis vazassem. Bustillo, por sua vez, negou qualquer irregularidade, dizendo que suas falas foram “tiradas de contexto”, que sua ex-subordinada “plantou informações” na investigação e que, a respeito do celular, teria apenas dado uma sugestão “de forma figurada”

Marset já tinha sido preso no Uruguai em 2013 por tráfico de drogas e cumpriu cinco anos de pena no presídio de Libertad, perto de Montevideú. Em 2022, a operação A Ultranza, no Paraguai, prendeu oito pessoas ligadas às atividades criminosas de Marset; e, em agosto deste ano, foi a vez da Bolívia seguir pelo mesmo caminho.

Ex-chanceler uruguaio Francisco Bustillo e presidente Luis Lacalle Pou em encontro com Jair Bolsonaro em Brasília, em fevereiro de 2021. Foto: Marcos Corrêa / Palácio do Planalto
Ex-chanceler uruguaio Francisco Bustillo e presidente Luis Lacalle Pou em encontro com Jair Bolsonaro em Brasília, em fevereiro de 2021. Foto: Marcos Corrêa / Palácio do Planalto

Seja como for, Bustillo já não é mais chanceler. Em sua carta de renúncia, reiterou que “não houve nada de ilegal” na tramitação do passaporte de Sebastián Marset. E completou: “as coisas não aconteceram como foram mostradas, mas são sensíveis o suficiente para que eu apresente minha imediata demissão ao presidente”. Ache, enquanto isso, desabafou, dizendo ter percebido que “todos já sabiam do que se tratava muito antes de mim” e que foi a única do governo a renunciar “não por ter feito algo incorreto ou ilegal”, mas “por não estar disposta a esconder comunicações da Justiça e por ter me negado a cometer um crime”. 

Os dias que sucederam o terremoto político foram, obviamente, de tensão. Lacalle Pou digeriu todas as informações diretamente dos EUA, onde esteve até o último sábado (4) para compromissos comerciais com o governo de Joe Biden. De volta à capital platina no final de semana, o mandatário aceitou as renúncias, designou novos nomes para os cargos vazios e disse ter “convicção” de que nenhum de seus ex-funcionários teria qualquer responsabilidade pela emissão do infame passaporte. O caso, que ganhou tração após o depoimento de Carolina Ache, seguirá agora sob investigação da Procuradoria-Geral, enquanto a oposição cobra mais demissões e os governistas tentam fazer a poeira baixar. 

Também há expectativa de que o próprio presidente seja testemunha do caso, uma posição delicada que já assumiu no início do ano em função de um outro caso envolvendo passaportes: em janeiro, o mandatário foi convocado a depor no âmbito de um caso de espionagem de opositores e emissão de documentos falsos envolvendo o ex-chefe de sua equipe de segurança, Alejandro Astesiano. Detido no final de setembro de 2022, Astesiano foi condenado em fevereiro por uma série de delitos, entre eles tráfico de influência, após ser apontado como um dos “cabeças” do esquema que repassava passaportes a cidadãos russos e ucranianos, entre outras irregularidades. Foi a primeira das bombas a esfumaçar os corredores da Presidência, mas sem causar o mesmo impacto político como o visto este mês. Embora tenha arranhado a imagem do governo, na época a gestão de Lacalle Pou foi rápida em isolar a figura do próprio Astesiano como solitário responsável pelas irregularidades. Um “cordão sanitário” que se tornou muito mais difícil agora, em um segundo episódio com elementos parecidos – e outros ainda piores. 

Sebastián Marset nas Cataratas do Iguaçú, na tríplice fronteira entre Paraguai, Argentina e Brasil. Foto: reprodução / redes sociais
Sebastián Marset nas Cataratas do Iguaçú, na tríplice fronteira entre Paraguai, Argentina e Brasil. Foto: reprodução / redes sociais

O nome de Sebastián Marset ecoa para além do Rio da Prata. Em agosto, as buscas pela figura da vez do mundo narco foram contundentes também na Bolívia, levando à investigação de mais de 100 pessoas por crimes ligados ao tráfico de drogas – cerca de 40 acabariam detidas. O endereço distante da terra charrúa não entrou na mira da Justiça de vários países por acaso: durante sua fuga, Marset teria percorrido o país do Altiplano, conseguindo escapar de uma intensa operação de busca, que envolveu até a visita de autoridades bolivianas a Montevidéu. Entre os detidos de meses atrás estão, há gente até do futebol, universo nada distante para o foragido, já que Marset também ficou famoso por pagar do próprio bolso para jogar – e vestir a camisa 10 – do Club Deportivo Capiatá, do Paraguai. O narcofutbolero também já usou identidade brasileira falsa e tem ligação com cidadãos peruanos.

Nenhum outro caso, no entanto, liga mais os alertas regionais do que o suposto envolvimento de Sebastián Marset no assassinato do promotor paraguaio antimáfias Marcelo Pecci. Considerado por autoridades como um dos maiores crimes transnacionais da década, o caso tem ramificações não apenas em grupos criminosos ativos em vários países, como o PCC, mas também inclui depoimentos que apontam para a participação de políticos paraguaios, como o poderoso ex-presidente Horacio Cartes (2013-2018) – entenda o caso. O próprio presidente Gustavo Petro, da Colômbia (onde Pecci foi morto em 2022) já apontou Marset como um dos nomes por trás da execução. Enquanto as investigações avançam para determinar os autores intelectuais do caso Pecci, Marset segue desaparecido, mas sem deixar de causar um rastro de destruição política nos países por onde passa.

Capa: Documentos falsos usados pelo narco uruguaio Sebastián Marset na Bolívia. Foto: Ministério de Governo da Bolívia.

#URUGUAI
AMÉRICA LATINA
SEBASTIÁN MARSET
LUIS LACALLE POU
FRANCISCO BUSTILLO
PARAGUAI
MARCELO PECCI
BOLÍVIA
CRIME
TRÁFICO DE DROGAS