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Bolsonaro trouxe de volta a arapongagem e o estado policial ao Brasil

A notícia de que o governo Bolsonaro monitorava brasileiros através de um sistema secreto de rastreamento de celulares suscita muitas questões que precisam ser esclarecidas

Carolina Botelho, para Headline Ideias
#POLÍTICA16 de mar. de 239 min de leitura
Bolsonaro fala com simpatizantes no "cercadinho" do Palácio da Alvorada, em 14 de janeiro de 2020, quando ainda era presidente. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Carolina Botelho, para Headline Ideias16 de mar. de 239 min de leitura

Gravíssima a notícia de que o governo Bolsonaro monitorava brasileiros através de um sistema secreto de rastreamento de celulares. Segundo apuração do jornal O Globo, durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) operou um sistema secreto para monitorar a localização de cidadãos em todo o país. A ferramenta permitia, mesmo sem caráter oficial, monitorar por onde andavam até 10 mil proprietários de celulares a cada 12 meses. 

A descoberta não surpreende, já que se trata de mais uma obra e graça que vem do governo Bolsonaro com a ajuda do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), chefiado pelo general Heleno. Mesmo assim não deixa de ser grave e merecedor de atenção.

Ao utilizar o programa, comprado de Israel durante o governo Temer, o governo Bolsonaro parece ter trazido de volta a arapongagem como prática comum da ditadura militar. O Serviço Nacional de Informações (SNI), agência do regime criada em 1964 com o objetivo de supervisionar e coordenar as atividades de “inteligência”, institucionalizou o grampo e o monitoramento de opositores por todo o território nacional para finalidades já bem conhecidas por nós.

A diferença entre a arapongagem descoberta pelo jornal O Globo e a da ditadura militar é que, no Exército de Brancaleone que tomou a República nos últimos quatro anos, a atividade ressuscitada pela Abin – que era chefiada por Alexandre Ramagem, subordinado ao GSI de Heleno – foi posta em prática com caráter absolutamente oficioso. Isto é, milhares e milhares de brasileiros estavam sendo monitorados, sem saber, por arapongas de Jair Bolsonaro, Augusto Heleno e Alexandre Ramagem.

Muitas perguntas sem resposta

O que ainda não está muito claro é uma lista de perguntas. Quem mandou monitorar? Quem monitorou? Quem sabia que havia monitoramento? Quem foi monitorado? Por que foi monitorado? Onde estão as informações e os relatórios sobre esses monitoramentos? Estes são questionamentos importantes e que devem ser esclarecidos.

Desde a posse, o governo Lula tem se dividido na tarefa de tocar o barco da normalidade com vistas a comandar agendas e políticas públicas fundamentais para a sociedade e, também, derrubar as várias vigas do estado policial e da instabilidade jurídica que Bolsonaro foi construindo pouco a pouco no Brasil.

Bolsonaro tentou, de diferentes maneiras, reviver certa atmosfera do antigo DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna), órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro durante a ditadura, conhecido por acomodar em suas dependências a prática regular de tortura de brasileiros opositores ao regime. O GSI, assim como outras instituições que foram tomadas pelo bolsonarismo, deu diversas mostras de que agiu de forma a apoiar a tentativa de instaurar um estado de exceção no Brasil.

São fartos os episódios em que o gabinete de Augusto Heleno participou ou se omitiu de suas funções de modo a ajudar no projeto de Bolsonaro. Uma das últimas notícias que tivemos sobre a participação do GSI deixado por Heleno foi no episódio gravíssimo de tentativa de golpe de estado ocorrida em Brasília em 8 de janeiro.

Entre muitas barbaridades contra o estado de direito, a imprensa noticiou que integrantes do GSI queriam deixar os golpistas que saquearam o Planalto saírem pelo térreo do prédio, isso em um momento em que um novo governo acabara de ser eleito. O ponto importante dessa história é que ainda há gente resistente à reconstrução democrática do país bem ao lado da presidência da república de Lula e isso precisa mudar.

Medidas do atual governo ainda são insuficientes

O primeiro passo já foi dado pelo atual governo, que foi o de enfraquecer grupos bolsonaristas ligados ao ex-presidente – muitos dos quais militares –, ao tirar a Abin do controle do GSI. Esse movimento provocou uma mudança positiva porque retirou de grupos antidemocráticos a liberdade que Bolsonaro outorgou para que a perseguição aos opositores ficasse na ordem do dia.

Embora seja um passo importante, ainda é insuficiente e não responde às questões colocadas nesta coluna. Além das perguntas sugeridas aqui, há ainda outras que merecem respostas e que seriam bem-vindas nesse momento de reconstrução do país. Por exemplo, o que diz o PL, partido que continua a abrigar Jair Bolsonaro, sobre essa prática de estado policial? Isso é algo que precisa ser explorado. É importante que o país saiba de que lado está o partido.

Também é bastante curioso o caso das elites do mercado financeiro, autodenominadas de liberais. Seria importante questionar o por que desse grupo, que tem legitimidade para influenciar decisões econômicas do país, manter-se em grande parte fiel ao bolsonarismo mesmo com todas as evidências de instabilidade jurídica, fiscal e de construção de um estado policial. É uma fatia estratégica da sociedade que não esconde que segue saudosa do bolsonarismo no poder e que faz bico para qualquer ação que o governo vencedor das últimas eleições pense em realizar. Segundo recém-saída pesquisa do instituto Genial/Quaest, incríveis 98% dos executivos do mercado financeiro consultados desaprovam a política econômica do atual governo, que completou três meses. A que se opõem de fato?

BRASIL - Brasilia, DF - 22/08/2019 - O presidente Jair Bolsonaro participa de cerimonia na tarde desta quinta-feira, no Palacio do Planalto, que marca o lancamento do projeto SecomVC. A proposta e lancar paginas em redes sociais para difundir noticias positivas do governo. Serao perfis no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube. Em meio aos ultimos desgastes envolvendo o presidente Jair Bolsonaro, como a indicacao de seu filho Eduardo Bolsonaro a Embaixada do Brasil em Washington, o governo decidiu por este lançamento de paginas em redes sociais para divulgar noicias consideradas positivas sobre suas acoes. A motivacao e o discurso repetido pelo presidente de que a gestao e vitima de noticias mentirosas e, por isso, precisa se defender. O objetivo e apontado pela Presidencia como "divulgar informacoes positivas e conquistas do governo". Foto: Daniel Marenco
"A sociedade e as instituições da república precisarão ficar vigilantes e arcar com os custos de conviver com setores cujas preferências são autoritárias e reacionárias". Foto: Daniel Marenco/HDLN

Ainda é difícil entender como chegamos até aqui. Mais difícil ainda é reconstruir pilares importantes do estado democrático, a tarefa mais importante do governo Lula. A primeira delas, inclusive. Já se sabe que os próximos anos não serão fáceis, mas parece que estão mais complexos do que se previa, tendo uma agenda enorme pela frente muita coisa ainda por fazer.

A sociedade e as instituições da república precisarão ficar vigilantes e arcar com os custos de conviver com setores cujas preferências são autoritárias e reacionárias, mas que devem ter claro que qualquer ameaça ao estado de direito deverá ser combatida. Há também um grande pedaço dessa tarefa para especialistas, como nós, cientistas políticos, que é o de monitorar a base da extrema-direita, tentando identificar perfis, valores, percepções e a quantidade de indivíduos mais extremados e simpáticos a ambientes autocráticos. E fazer isso de forma legal, democrática e transparente, à luz do dia.

Nesse sentido, é fundamental que o poder público encare a tarefa de responder questionamentos como esses que sugiro por aqui, além de identificar e responsabilizar quem participou de alguma forma da arapongagem de Bolsonaro. Por fim, é bom lembrar que a discussão sobre a inelegibilidade do ex-presidente também abre um caminho importante para sua responsabilização, uma oportunidade para a sociedade, já que ele não conta com imunidade e pode continuar assim nos próximos anos, se a justiça for feita.

GSI novamente nas mãos dos militares

Vale a pena mencionar fatos recentes sobre o GSI. Após décadas de liderança no Ministério da Defesa por civis, o presidente Michel Temer devolveu aos militares o comando da pasta. O ministro empossado à época foi Silva e Luna, o mesmo que veio a ser diretor-geral da Hidrelétrica de Itaipu e presidente da Petrobras no governo Bolsonaro.

Para o GSI, Temer designou um general bastante influente, de família de generais e amigo/primo do general Villas Bôas. Trata-se do general Sérgio Etchegoyen, que durante todo o período Temer atuou como ministro do GSI, tendo saído apenas para a entrada do general Augusto Heleno, amigo de décadas do próprio Etchegoyen e escolhido por Bolsonaro.

Em biografia recente, o Villas Bôas conta que ele e Etchegoyen passaram a infância juntos, tendo sido vizinhos em uma vila militar quando seus pais generais cumpriam missão. Estes fatos são importantes porque mostram que há uma linha coerente nas escolhas de nomes para cargos nos últimos anos. Estas merecem ser vistas com muita atenção em razão de produzirem consequências importantes para a sociedade, além de esclarecerem algumas condutas militares no período Bolsonaro.

Não custa rememorar também que, já no atual governo, logo após o malfadado 8 de janeiro, foi Etchegoyen quem veio à imprensa e atuou como interlocutor dos militares que se viram pressionados pela ofensiva das instituições republicanas dispostas a defender a democracia contra a tentativa de golpe de estado.

Alguns estudos já se dedicam a tecer conexões entre a atuação de militares e a atmosfera de crise política e institucional que o Brasil tem passado. O pesquisador Ananias Queiroga, doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande tem se dedicado a entender essas associações, pesquisa fundamental para este momento.

Trechos da biografia "General Villas Bôas: Conversa com o Comandante", de Celso Castro (FGV Editora, 2021): 

"Da fazenda, trago uma marca viva: uma cicatriz no peito do pé esquerdo. Sergio Etchegoyen e eu brincávamos de cravar uma faca no tronco da figueira, até que, batendo com o cabo na árvore, ela voltou e caiu espetada no meu pé. Era uma velha faca três listras que herdei de meu avô e guardo comigo." 

Quando Celso Castro – autor da biografia – perguntou se ele e o general Etchegoyen conversavam muito nesse período do governo Temer, Villas Bôas respondeu:

"Muito. Amigos desde guris em Cruz Alta, guardamos uma grande identidade na maneira de pensar e agir. Sergio tem uma capacidade enorme de interpretar um fato com perspicácia, extraindo os aspectos essenciais, e de apresentar com extrema objetividade e oportunidade as conclusões e sugestões mais pertinentes. Quando do impeachment, o presidente Temer me convocou, ainda antes da posse, para consultar-me a respeito da recriação do GSI, que a presidente Dilma havia extinto. No mesmo ato, ela havia deslocado a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para a subordinação da Secretaria de Governo, demonstrando estar desavisada em relação à importância e ao papel a ser desempenhado pelas instituições de Estado".

* Carolina Botelho é doutora em ciência política pelo IESP-UERJ e mestre em sociologia e antropologia pela UFRJ . Pesquisadora do IEA-USP, já atuou em outros centros como pesquisadora e professora e em órgãos de gestão pública.

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