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"As pessoas tentam voltar a um cotidiano, até o momento de um bombardeio"
Andrei Netto, da Headline | Paris, FrançaFelipe Dana, fotógrafo brasileiro e membro da equipe da agência Associated Press (AP) que venceu o Prêmio Pulitzer de fotografia, fala sobre a vida de civis e de jornalistas na guerra da Ucrânia
É sabido que, em uma guerra, uma reportagem, uma fotografia, uma imagem podem mudar os rumos do conflito, reorientar a geopolítica mundial e, literalmente, salvar vidas. Nessa semana, um trabalho dessa natureza, feito por sete fotógrafos durante a Guerra da Ucrânia, foi reconhecido pelos jurados do Prêmio Pulitzer na categoria Fotojornalismo (Breaking News Photography), um dos mais relevantes do mundo. Todos integram a equipe da agência Associated Press (AP), uma das mais presentes em solo ucraniano desde a ofensiva militar russa em fevereiro de 2022.
Suas imagens, reproduzidas nessa reportagem, compõem um mosaico devastador da guerra. Várias delas entrarão para os livros de história como a crônica de um conflito cruel, no qual impor o terror à população civil foi estratégia central em busca de uma capitulação que nunca viria.
Fotos como a feita por Emilio Morenatti de centenas de famílias ucranianas em fuga sob uma ponte destruída nos arredores de Kiev, em 5 de março de 2022, ou ainda a feita por Evgeniy Maloletka da jovem grávida Iryna Kalinina, 32 anos, morta quando se preparava para dar a luz na maternidade de Mariupol, bombardeada pela artilharia da Rússia, não serão esquecidas.
Na mesma equipe, além de Maloletka e Morenatti trabalharam Bernat Armangue, Nariman El-Mofty, Rodrigo Abd, Vadim Ghirda e um brasileiro, Felipe Dana. É desse carioca de 37 anos a foto de abertura dessa reportagem, que mostra o corpo de uma mulher assassinada em sua casa, na cidade de Bucha, na periferia de Kiev, em 5 de abril de 2022. No vilarejo, ao menos 458 pessoas morreram – muitas das quais com sinais de execução sumária – durante o cerco russo à capital.
Testemunha do conflito, Dana conversou com Headline na manhã desta sexta-feira, quando se preparava para participar do júri de outro prêmio maior da fotografia mundial que ele próprio já venceu, o World Press Photo, em Amsterdã, na Holanda. Na entrevista, ele fala sobre a importância do Pulitzer – distinção recebida por outros dois brasileiros na última década, os fotógrafos Maurício Lima e Ueslei Marcelino –, mas, sobretudo, sobre a imprevisibilidade da vida sob os bombardeios em solo ucraniano.
Atenção: as imagens são fortes, não devem ser apresentadas a crianças e podem chocar pessoas suscetíveis de todas as idades.
Headline – Você foi um dos vencedores do Pulitzer, um dos prêmios mais prestigiosos do mundo do jornalismo. O que esse prêmio lhe inspira? Como você recebe essa notícia e o que ele muda para você?
Felipe Dana – Primeiro, é um grande reconhecimento ao trabalho do grupo de fotógrafos da AP que foi premiado este ano. É um trabalho em equipe. Eu faço parte dessa equipe, e tenho bastante sorte de poder trabalhar com tantos profissionais talentosos no meu time. Mas é principalmente uma maneira de levar a atenção para a guerra. A guerra da Ucrânia é algo que todo mundo está acompanhando na mídia, mas é sempre bom voltar a discutir assuntos que às vezes as pessoas já não estão mais interessadas. Há fotos que talvez tenham passado desapercebidas na época da publicação, e é importante reviver essa conversa. Para mim, o mais importante do Pulitzer é o reconhecimento dessa história, que segue afetando tanta gente até hoje na Ucrânia.
Headline – Em que circunstâncias você trabalhou, em termos de segurança, principalmente? Conte um pouco de suas coberturas e do impacto da guerra para a sociedade civil ucraniana.
Dana – A equipe da Associated Press tem uma equipe grande cobrindo a guerra da Ucrânia. No caso da premiação, somos sete fotógrafos no total, contando comigo. Temos rotações, mas geralmente há diversos grupos cobrindo a Ucrânia. A gente se divide um pouco por área, sendo que tem uma equipe geralmente cobrindo os fronts, ou, dependendo da época, algumas equipes cobrindo os fronts. Eu já trabalho na Ucrânia há vários anos. Um dos meus companheiros de trabalho, que sempre está comigo, é um ucraniano que trabalhou comigo em vários conflitos. E, claro, quando teve essa escalada no ano passado eu fui para lá imediatamente. Passei três meses lá, saí um pouco para, vamos dizer assim, arejar um pouco, e segui voltando. Sigo voltando até hoje.
Ano passado eu permaneci bastante tempo na Ucrânia. Talvez mais tempo lá do que em casa. Eu trabalhei em várias cidades. Passei muito tempo em Kharkiv, que foi uma cidade bastante afetada, próximo da fronteira com a Rússia. Trabalhei também no leste. No início da guerra, trabalhei bastante em Kiev e nas cidades próximas, quando o front estava por lá. Mas é realmente um trabalho de equipe. A gente se divide para cobrir tudo o que está acontecendo.
Headline – A fotografia tem o poder de revelar coisas que o mundo não necessariamente está enxergando. A opinião pública às vezes parece fazer questão de não olhar para determinados temas, como uma guerra. Você sentiu que o seu trabalho e o trabalho da AP tiveram um impacto concreto na opinião pública internacional? Algumas fotos, como a foto da grávida deixando a maternidade de Mariupol, bombardeada pelos russos, foram de alguma forma um ponto de não retorno para a percepção internacional sobre o conflito, não?
Dana – Claro. Eu acho que todo fotojornalista sonha um dia com uma foto que vai mudar o curso da história positivamente, não é? Falar isso parece só um sonho, mas historicamente já aconteceu. Um exemplo é aquela foto do Vietnã (a da jovem Kim Phuc Phan Thi, de 9 anos, queimada após um bombardeio americano com napalm), que inclusive era uma foto de um fotógrafo da AP (Nick Ut). E acho que essa foto de Mariupol (feita por Evgeniy Maloletka, da AP), da mulher grávida sendo evacuada de uma maternidade que tinha sido bombardeada, pode ser vista também dessa forma. Talvez tenha tido um impacto relevante, até em termos de política internacional. Mas eu acho que a gente só vai saber no futuro se isso vai ser uma parte relevante da história dessa guerra ou não.
Mas o fotojornalismo certamente tem esse poder numa cobertura de guerra. Eu não acho que é muito saudável – ou eu pelo menos não foco nisso, não espero isso, porque você não tem como prever o que vai acontecer e acho que buscar uma foto histórica é uma ambição não muito realista. Mas eu acho que, sim, a fotografia tem esse poder. E acho que algumas das fotos que foram premiadas, como essa que a gente está falando de Mariupol, talvez tenham mudado parte da história. Eu tenho muita sorte de fazer parte dessa equipe, e estar nesse grupo, com fotos tão potentes.
"O Pulitzer é um reconhecimento desse trabalho e, principalmente, funciona muito bem para deixar esse conjunto de fotos marcado para a história da situação que, infelizmente, estamos vivendo hoje."
Headline – Nessa semana um videógrafo francês, Arman Soldin, da Agência France-Presse (AFP), morreu cobrindo o conflito na Ucrânia. É um conflito que tem deixado muitas vítimas entre jornalistas. Como você compararia a guerra da Ucrânia com outros conflitos que você tenha coberto?
Dana – Infelizmente, desde o início da escalada do ano passado, a quantidade de jornalistas mortos é altíssima. Eu perdi alguns amigos nessa guerra. A cobertura de guerra é, obviamente, uma das coisas mais perigosas que você pode fazer como fotojornalista. Mas as pessoas talvez não entendam que, na realidade, estamos buscando o tempo inteiro fazer isso da forma mais segura possível. É mais fácil falar do que fazer na realidade, mas eu estou o tempo inteiro buscando mostrar o que está acontecendo da maneira mais segura possível. E isso muda muito, dependendo da guerra.
Como isso funciona na prática? Depende muito do conflito que você está registrando. No caso da guerra da Ucrânia, é particularmente complicado, porque o inesperado é muito perigoso. Por exemplo, no Iraque, na Síria você está em situações embedded, integrado a um grupo de militares o tempo inteiro, porque não tem outra maneira de cobrir o conflito. No caso da Ucrânia, a maior parte do tempo, eu diria, no meu caso, eu estou junto com a população civil. Eu não estou necessariamente embedded. E, às vezes você está junto com a população civil numa cidade próxima de um front, vivendo ali por longos períodos. Um míssil, uma bomba, um ataque de longa distância, um ataque de drone, atinge uma área civil onde você não esperaria que tivesse um ataque.
"O inesperado é muito comum e é muito perigoso na Ucrânia."
Eu tive situações em que estava no meio de uma cidade onde não estava tendo a guerra em si, mas que sofreu ataques de longa distância, de artilharia de drone, de mísseis. Essa imprevisibilidade do perigo na Ucrânia é uma das coisas que talvez faça ser mais perigosa até do que outras guerras que eu já tinha coberto antes. Eu não sei, não gosto de pensar se é mais ou menos perigoso. Só é diferente. É difícil de prever, então é complicado. Como todos que estão trabalhando lá na Ucrânia, sempre vivemos situações inesperadas em que você não queria estar ali, e acabou estando. A minha maneira de trabalhar é sempre buscar minimizar a possibilidade dessas coisas acontecerem, mas infelizmente, é difícil na Ucrânia.
Agora, a gente está falando da cobertura jornalística. Se você pensar nisso tudo que eu falei para os civis é pior ainda. E é exatamente isso que a gente tenta mostrar. É difícil mostrar em fotos como muitas das consequências dessa guerra atingem a população civil exatamente por isso: o inesperado. As áreas atingidas não necessariamente são áreas de conflito em si, e essa é uma das grandes dificuldades, tanto para a gente trabalhar, quanto para a população civil. E isso você pode ver na nas fotos do Pulitzer. Tem inúmeras fotos de civis, de áreas civis sendo afetadas. A maior parte das fotos foca exatamente nisso, inclusive.
Headline – Você acompanha esse conflito há bastante tempo. Você vê uma evolução no terreno? A comunidade internacional se preocupa com a forma como os fronts estão estanque, sem resolução, o que aponta para um conflito de longo prazo, no qual os dois lados não parecem dispostos a sentar à mesa de negociações. Qual é a sua avaliação pessoal a respeito?
Dana – Na verdade é uma guerra que não começou no ano passado. É uma guerra que já acontecia, que não era tão noticiada e muita gente não sabia. Eu já tinha ido à Ucrânia várias vezes nos últimos anos, inclusive em 2021 – acho que uns seis meses antes da atual escalada –, fazendo exatamente uma matéria para mostrar que existia um frontline na Europa que era pouco falado. E, alguns meses depois, aconteceu essa escalada que mudou totalmente a dinâmica. Porque existia um acordo de cessar-fogo que não era cumprido, era quebrado diariamente, mas era pouco falado.
Obviamente, todo mundo sabia que a escalada no ano passado poderia acontecer, mas ninguém esperava. Eu pelo menos não esperava, e muitos especialistas não esperavam que as tropas russas fossem chegar em Kiev tão rápido, literalmente na periferia da cidade. Foi uma escalada bastante violenta, bastante rápida. De lá para cá mudou bastante. A guerra agora voltou um pouco para a área anterior, obviamente expandida, bastante expandida. Não tem mais o front que tinha no início da escalada, perto da capital. Porém o perigo está em qualquer lugar, como eu falei, com os ataques de longas distâncias, com mísseis e drones e ataques aéreos que podem vir a qualquer momento, até na capital ou em outras cidades muito distantes do front. É totalmente diferente do que a gente tinha no passado, em 2014.
"A guerra está mais focada numa área, mas não menos perigosa para a população exatamente pelos ataques de longa distância. Talvez exista uma falsa sensação de segurança hoje em alguns locais da Ucrânia onde a vida volta."
As pessoas tentam voltar a um cotidiano e conseguem, talvez, viver isso um pouco, até o momento de um ataque, de um bombardeio. Eu espero realmente que isso mude, porque o que vemos é um país inteiro em guerra. Apesar de o front estar, vamos dizer assim, contido numa área, comparado com o que aconteceu no ano passado, os ataques acontecem em qualquer lugar. Essa é uma grande diferença do que acontecia antes (da ofensiva russa de 2022), quando o front era contido em uma área do país, e não havia esses ataques de longa distância, não aconteciam bombardeios na capital ou em outras cidades, como agora. Mas prever o que vai acontecer tem sido muito difícil. Eu nem arrisco comentar porque acho que tudo o que eu pensava que poderia ou não acontecer desde o início da guerra foi diferente. Então eu já não estou tentando nem prever o que pode acontecer.
Headline – Você volta em breve para Ucrânia, imagino.
Dana – Sim. Eu tenho alguns projetos aqui, mas sigo acompanhando as notícias. No final do ano passado e no início deste ano eu estive lá. Na verdade, tenho ido constantemente desde da escalada e devo voltar no final do mês, talvez em duas semanas.