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Trabalho análogo à escravidão na Serra Gaúcha beneficiava também a BRF

Andrei Netto (reportagem) e Daniel Marenco(fotos), da Headline | Bento Gonçalves (RS)

Mesmo grupo que sofreu violência e ameaças em Bento Gonçalves não atuava apenas para produtores rurais e vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, mas também para frigoríficos na chamada "apanha de frango"

5 de mar. de 2311 min de leitura
5 de mar. de 2311 min de leitura

Os trabalhadores vítimas de violência, ameaças e condições de trabalho análogas à escravidão e resgatados na semana passada em Bento Gonçalves também atuavam para aviários fornecedores da Brazilian Food (BRF) na Serra do Rio Grande do Sul. A informação foi obtida por Headline. Embora envolva as mesmas vítimas, as mesmas empresas fornecedoras de mão de obra, e as mesmas condições de opressão e tortura, não houve denúncia de trabalho análogo à escravidão contra os frigoríficos, como ocorreu com produtores rurais e as vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi.

No momento do "resgate" dos trabalhadores em Bento Gonçalves, entre a quarta-feira, 22, e a sexta-feira, 24 de fevereiro, policiais rodoviários federais, policiais federais e agentes do Ministério Público e do Ministério Público do Trabalho verificaram as condições indignas de moradias e indícios de ameaças e tortura das vítimas, presença de pessoal armado e instrumentos como spray de pimenta e taser para contenção de revoltas. O uso de violência foi denunciado por testemunhos dos trabalhadores, sempre convergentes. Somados às circunstâncias de trabalho, esses elementos configuraram trabalho análogo à escravidão, segundo o Ministério Público do Trabalho.

A exploração da mão de obra era feita por intermédio de sete empresas pertencentes a dois homens, o baiano Pedro Augusto de Oliveira Santana e o gaúcho Fabio Daros. Santana é conhecido no interior baiano como "Pedro da Sadia". Os dois homens detinham quatro empresas dedicadas à fornecer mão de obra a aviários – para a atividade de "apanha do frango" –, e uma empresa para fornecer trabalhadores para a colheita de uva, além de uma empresa de transporte de cargas e outra de transporte de passageiros.

(E/D) O baiano Pedro Augusto de Oliveira Santana e o gaúcho Fabio Daros. Foto: Reprodução de redes sociais

Na tarde deste domingo, 5, a advogada de Pedro Santana, Roberta Adami, confirmou que empresas de seu cliente têm "contratos de exclusividade" no fornecimento de mão de obra a aviários que fornecem carne a frigoríficos da BRF da região da Serra Gaúcha. "Existem aviários na Serra que a gente presta serviços para poder suprir a BRF. Está todo mundo ligado", explica a advogada. "É muito aviário que a gente supre. São os aviários, não são os frigoríficos – mas indiretamente são eles, né? Nós estamos falando de pessoas indiretas, tá?", confirmando a seguir: "A gente atende os aviários, e os aviários atendem à BRF".

Segundo a advogada, as empresas de Pedro Santana obedecem "regras rigorosas". Ela alega ainda que a mão de obra utilizada nas safras de uva para a indústria do vinho não é a mesma que utilizada pelos aviários fornecedores da BRF. "O pessoal da safra é uma coisa, o pessoal que vem para trabalhar no frango está aqui há mais de 12 anos. Está aqui desde que a empresa começou", explica a profissional. "Se eles não entenderem o que aconteceu, vai atingir todo mundo, internacionalmente."

A advogada pediu várias vezes para que os nomes de empresas com contratos com Pedro Santanta não fossem mencionadas, assim como seu próprio nome. Headline, no entanto, considera que citar Roberta Adami é relevante para a consistência desta denúncia.

Leia sobre novas denúncias de trabalhadores:

De acordo Rafael Zan, auditor-fiscal do Ministério do Trabalho, as empresas dos dois suspeitos de fato prestam serviços a aviários, que fornecem para a BRF. Mas a empresa não foi autuada por exploração de trabalhadores com situação análoga à escravidão. Em lugar disso, na quinta-feira os auditores determinaram o retorno para a Bahia de 23 trabalhadores da "apanha do frango", a atividade desgastante realizada nos aviários em turnos de até 24 horas seguidas de trabalho. "Eles estavam com receio de não receber. A gente acompanhou isso", disse Zan.

O auditor reconheceu que a atividade de "apanha do frango" "tem problemas", mas também alegou que as condições seriam diferentes do pessoal que trabalha na colheita da uva. "São problemas em princípio sanáveis, que não demandariam uma operação como ocorreu na uva, de resgate. Mas, sim, há uma grande reclamação desse pessoal relacionada à apanha", diz Zan.

O argumento da advogada de Pedro Santana e do Ministério do Trabalho, no entanto, bate de frente com a realidade constatada por Headline em Bento Gonçalves. A reportagem encontrou-se com moradores dos entornos, membros de organizações caritativas, com funcionários de órgãos de fiscalização do trabalho e com agentes da Corregedoria de Polícia e, sobretudo, com dezenas de trabalhadores vítimas de exploração nos dois alojamentos – nas ruas Fortunado João Rizardo e Maximiliano Sonza. O primeiro foi a hospedagem da qual quatro trabalhadores fugiram na quarta-feira, 22, detonando o escândalo do trabalho escravo na Serra. O segundo, que só foi interditado na quarta, 1º, abrigava os 23 trabalhadores que retornaram à Bahia.

Um dos quartos do alojamento onde estavam os mais de 200 trabalhadores resgatados, no dia 24 de fevereiro. Foto: Daniel Marenco/HDLN

As fontes relatam que os mesmos problemas de exploração da mão de obra análoga à escravidão encontrados no setor vinícola também envolviam frigoríficos que prestam serviços à BRF. Na prática, a multinacional de alimentação era beneficiada pela presença de centenas de trabalhadores baianos em Bento Gonçalves porque os mesmos homens "contratados" para trabalhar nos parreirais também eram usados no chamado "apanha de frango". Segundo os trabalhadores, eles ora prestavam serviços aos produtores rurais e vinícolas, ora aos frigoríficos da BRF na região serrana do Rio Grande do Sul – outros grupos organizados por Santana foram ainda a Santa Catarina.

Trabalhadores confirmam

Vários trabalhadores confirmaram à reportagem terem atuado em ambas as atividades – na produção de uva e nos frigoríficos. "Eu trabalhava no aviário e também trabalhava na uva. No aviário, o trabalho é cansativo. Aí eles vêm e dizem que querem que eu faça 10 cargas. Tem cobrança toda hora, 24 horas. Tinha de fazer 10 cargas, sem comer direito", explicou José Janderson Carneiro de Araújo, 32 anos, baiano de São Domingos. Segundo Araújo e outros trabalhadores com relatos convergentes, caso o tempo de descarga de um caminhão carregado de aves ultrapassasse 30 ou 40 minutos, havia multas ao trabalhador – que agregava assim uma dívida com a empresa contratante.

Araújo, que estava gripado e com os pés feridos pelas condições de trabalho, também conta que somou em dois dias de falta R$ 800 reais em multas por ausência – dois terços do "salário" previsto para o mês, ainda sem os descontos por alojamento e mercado. Com cerca de R$ 4 mil a receber "por direito", segundo suas contas, ele decidiu não retornar à Bahia no primeiro grupo de resgatados, na expectativa de ser remunerado. Com a intervenção do Ministério Público do Trabalho, ele reclamou às autoridades.

"Eles pegam a gente na precisão, no momento em que a gente precisa ter uma renda para trabalhar, para se manter e manter a família. Pegam a gente no aperto da alimentação. Aí prometem salário, a gente vem, trabalha", conta José Janderson Carneiro de Araújo, 32 anos, baiano de São Domingos. "Mas quando chega o dia de receber, não está ali, não está presente. Dá 10, 12 dias (de atraso). E como eu tenho filho, tenho que tomar dinheiro emprestado. E como toma dinheiro emprestado, quando acaba de receber o salário, já fica sem nada de novo."

José Janderson Carneiro de Araújo tem seus pés feridos pelo trabalho sem descanso de "apanha frango". Foto: Daniel Marenco/HDLN

Ex-morador do mesmo alojamento, hoje vivendo por conta própria em Bento Gonçalves, um trabalhador de confissão muçulmana que pediu para não se identificar diz que a alternância entre a colheita de uva e o trabalho em frigoríficos foi clara desde a proposta de trabalho, que recebeu em janeiro de 2022 de um homem identificado como "Marcio". "Em março acaba a safra, vocês vão vir para o frango, porque a uva a gente acelerou. E aí essa vaga é para o frango", diz Mohamed, lembrando as palavras do intermediário. O trabalhador acabou seu contrato com um problema de hérnia de disco em função das condições de trabalho no "apanha de frango".

A alternância entre o trabalho na viticultura e nos frigoríficos também era uma realidade no segundo alojamento. "Eu também estava nos dois. A uva foi embargada, por 90 dias. Mas a gente ainda está no aviário", disse Franklin Asiegbunem, nigeriano de 26 anos. Outros trabalhadores que preferiam não se identificar também confirmaram a dupla atividade. Questionado sobre sua rotina de trabalho, ele afirmou: "Meu contrato era um mês no frango e dois na uva. A gente trabalhou um mês no frango e um na uva".

O problema do trabalho análogo à escravidão não é novo nos frigoríficos da região. Há 10 anos, em julho de 2012, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Rio Grande do Sul (SRTE-RS) já havia identificado a ocorrência de trabalho escravo e resgatado 12 apanhadores em frigoríficos que abasteciam a BRF nos municípios gaúchos de Nova Bréscia – também na Serra – e Lajeado. O assunto foi alvo de reportagem da Repórter Brasil.

Há seis anos, o Ministério Público do Trabalho em Caxias do Sul firmou o "oitavo e último" termo de ajuste de conduta (TAC) com todos os frigoríficos localizados na Serra gaúcha. Parte deles prestavam serviço à JBS, outra gigante da alimentação.

Novos casos

Agora a situação parece se repetir pelas mãos dos dois intermediários. "Pedro da Sadia" é responsável direto pelo recrutamento e pelo transporte dos trabalhadores da Bahia para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Em sua "estratégia" de atração de mão de obra, oferecia salário de R$ 2 mil por mês, ou contratos de duração temporária com valor fixo, além de transporte, alimentação e hospedagem grátis.

Quartos sem ventilação, sujos, sem luminosidade e com superlotação. Foto: Divulgação MT

A reportagem teve acesso a um dos áudios trocados entre "Pedro da Sadia" e trabalhadores via WhatsApp. Na gravação, ele afirma: "O ano passado era 70 dias, R$ 4 mil limpo. Aí eu pago as passagens, tudo certinho, pá-pá-pá. Então esse ano a gente vai colocar como 60 dias – vai tirar 10 dias – o pacote. R$ 4 mil", diz ele, referindo-se ao número de dias de trabalho. Em outros trechos, ele explica: "É um pacote", "na mão do cara, líquido". "Aí eu dou alimentação e pago mais a passagem, e pago mais a estadia, que é o alojamento, né?", completa.

O alojamento era garantido por outra empresa, pertencente ao gaúcho Fabio Daros, sócio de Pedro Santana. Todos dois foram presos pela polícia gaúcha, mas já liberados sob fiança.

Leia o testemunho de tortura e tentativa de homicídio:

Trabalho árduo e dívidas crescentes

Nas promessas, Pedro da Sadia também garantia que o trabalho se referia a uma dada tarefa – colheita de uva, por exemplo. Na prática, porém, os recrutados acabavam trabalhando também em outras áreas da economia da Serra gaúcha, de acordo com a demanda dos empresários locais. E a realidade era muito diferente do prometido. Em lugar de transporte gratuito, cada trecho do trajeto Bahia-Rio Grande do Sul era cobrado por R$ 600. De saída, o trabalhador tinha uma dívida pela vinda, e outra se quisesse retornar. O alojamento não era gratuito, mas R$ 350 por mês, e a alimentação se limitava a uma refeição. Mais alimento poderia ser comprado "fiado" em um mercadinho do bairro de Borgo, gerando uma dívida alimentar. Cada ausência no trabalho – mesmo por questões de saúde, não raro indicadas em atestado médico – era sancionada com multas de R$ 400 por dia. Os pagamentos com frequência atrasavam. Em caso de falta de dinheiro, o "empresário" oferecia empréstimos cujos juros chegavam a 50% em 15 dias. O resultado eram dívidas crescentes e a dependência – características do trabalho análogo à escravidão.

Sentado na calçada em frente ao alojamento em que dormia, José Janderson Carneiro de Araújo, mostra no celular o print de tela que a mãe mandou preocupada com a matéria do resgate perguntando sobre o que tinha acontecido com o filho. Ao fundo, abandonado, com o pneu furado, o gol logotipado com a marca da empresa BRF. Foto: Daniel Marenco/HDLN

Mesmo após a intervenção das autoridades e a revelação do escândalo, as práticas trabalhistas continuavam a acontecer. Na quarta, 1º, Headlinetambém constatou a chegada e partida de micro-ônibus que levavam trabalhadores, e ouviu novos relatos de ameaças e de pagamentos atrasados. No mesmo dia, em frente ao alojamento interditado na Rua Fortunato João Rizardo, onde estavam 207 pessoas no momento da ação policial – mas que chegou a comportar mais de 400 pessoas semanas antes, durante a colheita – havia um automóvel Gol. Nas suas portas, havia adesivos de uma empresa: BRF.

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