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Sonntag: "Pelé foi o primeiro superastro do futebol mundial"

Andrei Netto, da Headline | Paris

Como um atleta negro surgido nos anos 1950 se impôs como maior nome do esporte mais popular do planeta? O sociólogo alemão Albrecht Sonntag, especializado em futebol, explica

29 de dez. de 2214 min de leitura
29 de dez. de 2214 min de leitura

As primeiras imagens do camisa 10 albiceleste Lionel Messi com a taça dourada da Copa do Mundo de 2022 nas mãos reacenderam o fervor daqueles que consideram o argentino GOAT, ou Greatest of All Times – o melhor de todos os tempos. A contestação não é nova, e já foi encarnada no passado por outro argentino – Diego Armando Maradona, mais um camisa 10 a levantar a taça, em 1986.

O que cada vez menos pessoas sabem, em especial entre os membros da geração que não havia nascido antes de 2000 e que cresceu sob a influência de Messi e de Cristiano Ronaldo, é que, se há uma mística em torno da camisa 10, essa mística se deve a Pelé.

Único jogador tricampeão mundial de futebol, mais jovem campeão mundial – ao levantar a taça aos 17 anos e 8 meses, em 1958 –, mais jovem artilheiro de uma final de Copa do Mundo, maior artilheiro de todos os tempos e, até Neymar, maior artilheiro da história da maior seleção da história do futebol mundial, a Seleção Brasileira, Pelé colecionou recordes ao longo de sua carreira – e parte deles continua atual, 45 anos após sua aposentadoria.

Albrecht Sonntag, sociólogo alemão e professor da École Supérieure des Sciences Commerciales d’Angers (ESSCA), da França, especialista e apaixonado por futebol, iniciador e coordenador do projeto transnacional Football Research in an Enlarged Europe (FREE), entre 2012 e 2015, viu não apenas Pelé nos gramados, mas todos os astros do esporte desde a Copa do Mundo de 1970, no México – vencida pelo Brasil. Para ele, o camisa 10 brasileiro foi o primeiro "superastro" da história do futebol mundial, e sua supremacia como melhor de todos os tempos nem deveria ser questionada. Pelé, diz ele, não foi apenas um jogador fora de série – foi um desportista (negro) que, em uma era marcada pelo preconceito racial, criou unanimidade entre os melhores profissionais do futebol, a ponto de tornar-se um mito do esporte mais popular do planeta.

A seguir, a síntese da entrevista concedida a Headline.

Headline – Quem é Pelé na história do futebol mundial?

Albrecht Sonntag – Quem é Pelé? A resposta a esta pergunta depende, em grande parte, da data de nascimento da pessoa que responde. Nasci em 1962 e tinha 8 anos de idade quando assisti à final no México. Foi minha primeira Copa do Mundo. Nos anos 1970, eu era um adolescente em um país (Alemanha) que amava o futebol – e nesse país não havia discussão sobre quem era o melhor jogador de todos os tempos. Não havia contestação, hierarquia, embora houvesse muitos bons jogadores à época. Franz Beckenbauer e Johan Cruyff eram fora do comum. Mas mesmo eles nunca pensaram que poderiam ser o jogador número 1 do mundo. Era um tempo em que a Bola de Ouro era reservada para jogadores na Europa, então havia uma hierarquia muito clara: havia os muito bons, e havia o superastro. Isso é algo que não temos mais quando discutimos qual é o melhor dentre vários grandes jogadores. Nenhum tem o impacto que Pelé teve na época.

Claro que a grande era de Pelé foi uma outra. Ela aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, com o advento da televisão e sua democratização. Havia uma espécie de invenção do imaginário mundial do futebol e de seus astros. Havia alguns astros antes, mas tinham alcance nacional. Havia Raymond Kopa, na França, e Fritz Walter, na Alemanha, que eram jogadores imensos. Já havia grandes jogadores antes da guerra, brasileiros, uruguaios, italianos, não podemos esquecer. Já existiam estrelas nacionais, mas poucos tinham um impacto realmente transnacional, e também um afeto transnacional.

Como alguém poderia não amar Pelé? Como alguém poderia discordar de sua condição de melhor jogador do mundo? Era impossível nos anos 1960 e 1970.

Coroação: campeão do mundo aos 17 anos, Pelé passou toda sua carreira sob os holofotes e sem contestação no posto de melhor jogador de futebol, até que primeiras divergências surgiram com Maradona, nos anos 1980. Foto: Divulgação FIFA

Os anos 1970 também marcam a grande transformação do futebol. A chegada de João Havelange ao comando da FIFA marca a profissionalização, a comercialização do esporte. E esse futebol verdadeiramente global também precisava de um astro global, um ícone universal e consensual. E o primeiro astro do futebol mundial foi Pelé. Essa ideia de que ele era fora de série, que estava acima de qualquer competição, ficou na minha cabeça.

Além disso, há recordes que ele alcançou e que ainda hoje são válidos, em uma época em que os jogadores têm muito mais competições, e que as competições são mais longas. Pelé ainda é os mais jovem goleador de uma Copa do Mundo, por exemplo. E imagens suas continuam sendo icônicas – sejam as imagens em preto e branco da Copa da Suécia, em 1958, seja a brutalidade das imagens coloridas do Estádio Azteca, no México, em 1970. Essas imagens estão inextricavelmente ligadas a Pelé. Entre o gol antológico na Suécia e o gol de cabeça na final contra a Itália, no México, passaram-se 12 anos. O mundo mudou entre os dois eventos, mas houve uma constante: Pelé. Isso é realmente algo que atravessou toda uma geração de fãs de futebol.

Headline – Pelé tinha um outro diferencial: em um mundo muito diferente, pleno de preconceitos, Pelé era negro. O que isso representava na época, nos anos 1950?

Sonntag – Sim, é muito importante lembrar que o primeiro superastro mundial do futebol foi um jogador negro. É importante não tergiversar sobre isso. Era muito diferente de uma estrela de cinema, ou de um grande cantor de soul negro. O futebol é um sistema meritocrático onde só a competência conta. Se você for melhor do que os outros, você se imporá. É preciso um pouco de sorte, claro – não sofrer muitas lesões, se possível, para durar no tempo.

Mas, em um mundo ultracompetitivo, mas meritocrático, que um homem negro prevaleça sem nenhuma contestação, isso significa algo muito importante nos anos 1950 e 1960. Hoje essa não é mais uma questão. Mas, nos anos 1950 e 1960, é fenomenal. Imagine o impacto que esse aspecto teve sobre milhões de jovens pretos, por exemplo, quem se diziam: "Eu também posso fazer isso, não posso?". Não estou falando da sociedade do Brasil apenas. Estou falando da sociedade mundial, porque ele era um ícone mundial.

Headline – Nesse sentido, poderíamos compará-lo a outros ídolos negros do esporte, como Owens e Ali, não?

Sonntag – Sim, de certa forma. No esporte, com seu princípio meritocrático, não se pode apresentar pretextos banais ou cínicos para impedir a ascensão de alguém que é talentoso e que trabalha duro para chegar lá. Pelé tinha os dois: um talento extraordinário, caso contrário não seria capaz de fazer o que ele fazia, mas também uma vida que era bastante monástica e concentrada no esporte. Outro dia eu peguei um livro da minha estante que me foi dado quando eu tinha 15 anos. Título: "Jogar Futebol como Pelé". Ele diz – com razão, é claro – que é preciso nunca negligenciar os estudos, mas acima de tudo você tem que trabalhar, e trabalhar duro. A mensagem é extraordinária e é exatamente isso que explica sua notável longevidade no topo. Não é por acaso que ele é o único a ter ganho a Copa do Mundo três vezes – o que é um absurdo, quando você olha para a longevidade média de uma carreira no futebol.

Há algo mais que faz de Pelé um astro maior do que os astros de hoje: o o futebol era diferente. Não estou falando da velocidade de um Mbappé, isso seria um injusto. Sabemos que os atletas de hoje são ainda mais bem treinados, e que a nutrição progrediu nas últimas décadas. Não é essa a questão. O futebol naquela época era relativamente jovem. Quando em 1958 ele ganha a Copa do Mundo, quando o Brasil enfim vence sua primeira Copa, é apenas a sexta edição do torneio. E quando ele vence em 1970, no México, é a nona. Das nove, ele venceu três. É alucinante! Também há algo mais, na repetição da Copa do Mundo a cada quatro anos, que perdura até hoje, é que chegamos à 22ª edição da Copa do Mundo. E nessas 22 edições, há grandes reencontros que se repetem. Em 2002, por exemplo, ficamos surpresos que o Brasil e a Alemanha nunca haviam se encontrado. Agora já existe um histórico nesse confronto. Nessa repetição de competições, quando há a multiplicação de estrelas nas camisas, há também um certo desprendimento que ocorre. Perde-se um pouco da magia. Em 1958 e em 1970, não havia perda de magia alguma. Era solene. Hoje houve uma pequena desvalorização nessa repetição. Já Pelé nunca foi manchado por este caráter muito repetitivo do calendário esportivo.

Pelé posa para fotógrafos em frente a uma pintura intitulada "Pelé, Chute de Bicicleta" do artista Russell Young, durante uma prévia para a imprensa para promover a exposição "Pelé: Arte, Vida, Futebol", na Halcyon Gallery, em Londres, em 22 de setembro de 2015. A exposição, com obras dos artistas Andy Warhol, Lorenzo Quinn e Pedro Paricio, também apresentava memorabilia da carreira de Pelé, incluindo sua primeira partida de futebol. Foto: Justin Tallis/AFP
Pelé posa para fotógrafos em frente a uma pintura intitulada "Pelé, Chute de Bicicleta" do artista Russell Young, durante uma prévia para a imprensa para promover a exposição "Pelé: Arte, Vida, Futebol", na Halcyon Gallery, em Londres, em 22 de setembro de 2015. A exposição, com obras dos artistas Andy Warhol, Lorenzo Quinn e Pedro Paricio, também apresentava memorabilia da carreira de Pelé, incluindo sua primeira partida de futebol. Foto: Justin Tallis/AFP

E talvez haja um terceiro ponto que coloca Pelé como um fora de série e de todas as considerações de equivalência, que é sua capacidade de criar mitos. Pelé é um jogador mítico, na própria ascepção do termo. O que é um mito? São ideias, imaginários e narrativas intemporais que estão ancoradas em nosso subconsciente. Aprendemos sobre eles quando somos crianças, com contos de fadas, ou quando somos adolescentes, com a mitologia grega e latina, as antigas sagas, etc.

"Toda a sua vida suscita mitos. Penso, por exemplo, no mito da inocência, do mito do escolhido dos deuses. Há alguém que tem um 'dom', que é dotado pelos deuses e que supera as outras pessoas. Um pouco como Mozart, por exemplo."

Há um segundo mito que é muito importante, que é o mito da Fênix. Pelé foi o mago de 1958, surpreendeu a todos, foi a estrela pisoteada e maltratada de 1962 e 1966, que declina. E então o superastro triunfante de 1970 que retorna, ainda mais brilhante, reforçado pelo advento da TV a cores e pelo amarelo da camisa canarinho, o que foi alucinante. Aquela final de 1970, quando eu tinha 8 anos, marcou a minha memória para sempre. Esse retorno triunfante, contra todas as expectativas, é algo muito forte. Tenho vários livros sobre a Copa do Mundo no México escritos em alemão por jornalistas, e todos eles abordam o retorno de Pelé, como ele volta à vanguarda e como ele faz uma Copa do Mundo impecável, com cenas que se tornaram antológicas – seja o drible contra o Uruguai, ou a cabeçada contra Gordon Banks, seu gol na final ou, também na final, aquele passe descuidado para Carlos Alberto, que é absolutamente brilhante. O grande escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu que todos nós somos como mendigos que vamos até o estádio dizendo: "Por favor, nos dê uma jogada como esta". E Pelé fez várias dessas jogadas no mesmo torneio, durante as três semanas no México.

E há ainda um último mito. Pelé criou, de certa forma, o mito do número 10 no futebol. Depois de Pelé, o número 10 é sagrado, é algo especial, um número que dá uma responsabilidade pesada à pessoa que o veste. Pelé criou a história do número 10. Mesmo que a posição como tal não funcione mais no sistema de futebol de hoje, o número 10 é uma história da qual não podemos escapar. Todos que aprendem a jogar futebol sabem que é especial, que o número 10 é mítico na história do futebol. É isso a meu ver explica um pouco por que Pelé ocupa um lugar privilegiado no imaginário mundial do esporte mais popular em todo o mundo. O futebol ainda é dominado por ele.

Headline – A televisão e a difusão mundial da Copa também contribuíram para esse mito, não?

Sonntag – O advento da TV foi um fato marcante sobre Pelé. A partir de 1958, na Suécia, foi possível acompanhar todos os jogos pela primeira vez. E então, em 1970, aconteceu a primeira transmissão em cores. Imagine: eu posso encontrar fotos e algumas imagens de Di Stefano, por exemplo, um astro dos anos 1950 na Europa. Mas ninguém conhece esse material – e de toda forma alguém como Stefano, com suas 3 nacionalidades e sua carreira caótica nas seleções nacionais, não produziu o mesmo apego que Pelé. Então Pelé teve uma vantagem competitiva na memória coletiva por estar presente em um momento crucial do futebol, o momento em que eu podia ler no jornal e assistir na TV. Pelé realmente caiu na hora certa.

O torneio de 1970 foi dominado por sua personalidade. Primeiro, porque você não sabia se ele estaria no nível dos demais. Então você viu muito rapidamente que ele não só estava no nível, mas está melhor do que nunca. E depois a final entra para a história da Copa do Mundo como o último torneio ideal. Era o torneio ideal porque, sem sombra de dúvida, o melhor time vence – o que é raro no futebol. É como uma conquista de coroação. Havia apenas 16 equipes, em 3 semanas.

Pelé usa um sombrero, após o Brasil vencer o terceiro mundial, a Copa do Mundo do México, em 21 de junho de 1970, no Estádio Azteca. Foto: Divulgação FIFA

Era o torneio ideal. De certa forma, foi mais inocente do que hoje. Não em termos de salário, não em termos de renda para a FIFA. Não me refiro a nenhum desses parâmetros. Foi a melhor em termos de ética. E nisso também Pelé teve sorte. Seu caráter e sua personalidade não eram tão expostos como os jogadores de hoje são. Isso lhe permitiu permanecer relativamente discreto aos olhos do mundo, apesar de toda sua exposição no Brasil. Houve sua participação no ministério, por exemplo, ou durante os debates sobre democracia, mas sua imagem foi relativamente bem preservada.

Headline – Uma pergunta sobre as novas gerações: o que seus alunos, que são muito jovens, pensam a respeito de Pelé?

Sonntag – Essa é uma boa pergunta. Meus alunos têm 18, 19 anos de idade. Eles nem sequer testemunharam a primeira vitória da França na Copa do Mundo, em 1998. Obviamente, em algum momento de suas vidas eles ouviram falar dos grandes de antes, de Maradona ou outros, por exemplo. Mas, para eles, Zinedine Zidane é pré-história. Para um fã de futebol, é possível adquirir um pouco de conhecimento através do Youtube, e muitos deles o fazem. Ainda não fiz uma pesquisa sobre o que pensam de Pelé, mas vou vê-los na sala de aula em alguns minutos e vou fazer a pergunta.

Headline – Queria propor um exercício de imaginação: o que Pelé seria no futebol de hoje? Seria o gênio que foi?

Albrecht Sonntag – Comparar gerações de jogadores é sempre complicado. A primeira grande diferença é o equipamento esportivo. Pense nos equipamentos que estavam disponíveis naquela época: as chuteiras, as bolas, os gramados... Eram handicaps tão grandes que seria impossível uma comparação com os jogadores de hoje. Pense no nível da preparação física. Pelé era extraordinário em termos físicos, o que se evidenciou em sua longevidade, sua higiene de vida. Ele era impecável – essa foi uma grande desvantagem de Maradona, por exemplo.

Apesar de todos esses handicaps, e após 12 anos jogando partida após partida, como verdadeiro escravo de seu clube, ele termina sua carreira na seleção em 1970 fazendo um torneio como fez. E, depois, no Cosmos, de Nova York, jogando ao lado de Beckenbauer e outras estrelas, ele não decepcionou. Hoje você vê jogadores como Messi, Cristiano Ronaldo, Modric jogando em alto nível, mas eles têm muitos recursos à sua disposição que não existiam na época de Pelé.

Eu gostaria de ver Pelé aos 25 anos de idade, treinado por Guardiola. Não tenho dúvidas de que ele, com as mesmas predisposições físicas que tinha, mas com o equipamento, os gramados e a ciência de hoje, se sairia muito bem. Ele teria sido muito, muito bom. Talvez mítico.

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