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"Militares se corromperam diante de liderança carismática", diz pesquisador

Deborah Berlinck, da Headline | Genebra

Versão fantasiosa da história e guerra sem fim contra comunistas alimentam militares que aderiram ao bolsonarismo, mostra o professor Eduardo Heleno. Correntes de militares agora buscam novos círculos para influenciar a tropa

26 de jan. de 2315 min de leitura
26 de jan. de 2315 min de leitura

"Estamos prestes a nos tornarmos um país marxista". No dia 24 de novembro, menos de um mês após a eleição presidencial, o  grupo de ultradireita Inconfidência, criado por militares reservistas, pregou abertamente o golpe militar para derrubar Luiz Inácio Lula da Silva.  

Num discurso em vídeo nas redes sociais, recheado de fake news, o coronel aposentado Reynaldo de Biasi Silva Rocha, presidente do grupo, anunciou em tom solene : "É plano de Lula, caso assuma o poder, extinguir nossas Forças Armadas substituindo-as por milícias vermelhas". Na postagem, era feita a conclamação ao golpe. O vídeo foi removido do Youtube, por violar as regras, mas segue no Instagram e no Facebook.

Inconfidência é um entre dezenas de grupos de pressão política que surgiram nos anos de redemocratização depois do fim da ditadura (1964-1985). Foram lançados por oficiais de alta patente – generais, coronéis, muitos com experiência na área de inteligência e informação – com o objetivo de contar outra versão (negacionista) da história do país, tentar impedir investigações de crimes da ditadura e resgatar o prestígio perdido das tropas. 

Eduardo Heleno, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutor em ciência política pela mesma instituição, pesquisa há anos esses grupos. Em entrevista a Headline, por Zoom, ele explica a lógica que alimentou essas correntes.

"Em todo esse panorama de redemocratização, esses grupos de pressão sinalizam militares insatisfeitos com a democracia, com o status quo das Forças Armadas. E dentro da instituição militar, agora falando dos militares da ativa, existe uma educação voltada a colocar como cânones da honra os valores de 1964".

Algumas ações vieram inclusive de militares da ativa. Um exemplo é o livro “Orvil”, encomendado pelo ministro  do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, no período de redemocratização. O livro foi pensado para se contrapor ao "Brasil: Nunca Mais", que denunciava violações da ditadura. Com a publicação vetada por Sarney, o Orvil nunca veio a público, mas circulou clandestinamente até os dias atuais, contando uma nova versão da história brasileira. 

A maior parte dos grupos de pressão – criados por oficiais aposentados – desapareceram entre 2010 e 2014, segundo o pesquisador. Hoje restam dois: o Inconfidência, de 1992, e o Terrorismo Nunca Mais, lançado em 1998 por oficiais impactados com a política do então presidente Fernando Henrique Cardoso de resgatar a memória das vítimas da ditadura. Foi a resposta dos reservistas ao grupo "Tortura Nunca Mais".

No lugar deles, surgiram nos últimos anos outras formas das correntes militares influenciarem as tropas, o público e até mesmo a narrativa histórica em certos círculos. "O que nós temos hoje são outras formas de ação política. Então, por exemplo, o próprio general Villas Bôas criou um Instituto Villas Bôas. A ideia dos grupos de pressão que foram vistos até 2014-2016 são modificadas por institutos que são think tanks, que têm um enraizamento e um diálogo maior", explica.

Heleno descreve como esses grupos foram se multiplicando no período de redemocratização, fala de corrupção moral cada vez mais presente entre militares que se entregaram ao bolsonarismo e diz que a análise do discurso destes grupos mostra que o finado filósofo da extrema direita, Olavo de Carvalho, não inventou nada: apenas repetiu o que generais aposentados destes grupos vêm dizendo há anos.

A seguir, trechos editados da entrevista.

Headline – A invasão em Brasília aconteceu por conivência, por concordância ou simplesmente por erro na avaliação das Forças Armadas?

Eduardo Heleno — Acho que esses três elementos podem ser colocados a partir do momento que houver mais informações. O que temos são indícios. Um indício importante: o comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier dos Santos, sequer foi à cerimônia de posse [do sucessor], o que nunca aconteceu no período da redemocratização. Ele deixou de ser o representante de uma força do Estado, cujo lastro está na Constituição, para ser representante de um movimento político, efêmero. 

Foto: Arquivo pessoal
Eduardo Heleno. Foto: Arquivo pessoal

A sinalização do comandante da Marinha era de quebra de hierarquia. Mas ele não foi o único. Há outras interações. Por exemplo, a presença e a influência do general Heleno no Gabinete de Segurança Institucional [da Presidência]. Uma das golpistas presas tem foto no Twitter abraçada ao general Mourão. Nos últimos quatro anos,  naturalizamos a falta de decoro em diversos níveis. Envergonharia ao homem que prestou serviço à pátria ter sua foto associada a um movimento desse tipo e achar que não é um movimento terrorista. Então, são duas quebras de decoro. É uma corrupção de ordem moral. Muitas vezes a gente fala de corrupção relacionada a recursos. Mas a corrupção, a base dela, é uma ordem moral. Alguns militares escolheram se corromper diante de uma liderança carismática.

Headline – Você pesquisou vários grupos formados por militares e civis lançados depois do fim da ditadura, especialmente depois da Constituição de 88. Com que propósito surgiram e sobre o que eles falavam?

Eduardo Heleno — Essa história começa até um pouco antes da Constituição. Já no período que marca a eleição de Tancredo Neves, havia oficiais da ativa do centro de inteligência do Exército, que num jornal tablóide chamado "Letras em Marcha" enviava a seguinte mensagem para a tropa: que Tancredo Neves, caso vencesse, ia instaurar o comunismo no Brasil.

O Tancredo seria uma passagem para o comunismo. E nesse período, sargentos da Inteligência vão, por exemplo, pichar paredes em Brasília falando que o comunismo está vindo aí, como se um grupo comunista estivesse apoiando Tancredo. Vão também queimar gráficas da campanha do Tancredo. Tudo na surdina. Mas eles vão se organizar em outro grupo de pressão, conhecido como a Associação Brasileira de Defesa da Democracia, que vai ser uma espécie de think tank, buscando posicionar grupos à direita diante do novo quadro. Eles vão se posicionar ao longo do governo Sarney, um governo muito marcado por uma tutela militar.

Headline – E Sarney teve um papel de apoio à ditadura militar ao longo da carreira política.

Eduardo Heleno – Havia uma preocupação dos oficiais de acontecer [no Brasil de Sarney] o que aconteceu na Argentina. Quando a Junta Militar perde a guerra das Malvinas, em 1982, ela fica meio que sem sustentação. O governo cai. É feita a eleição, os peronistas não assumem naquele momento, mas assume a União Cívica Radical, com Raul Alfonsín. E aí tem um novo estado de direito, em que a Junta Militar tem que pagar pelos erros na guerra das Malvinas, mas também pagar pelos erros do regime militar, os desaparecidos. Os oficiais brasileiros ficam com receio de isso acontecer aqui.

Headline – Você citou o grupo "Letras em Marcha" no início da redemocratização. Por que nunca se olhou para esses grupos?

Eduardo Heleno –  O Letras em Marcha surgiu em 1971 e a Associação Brasileira da Defesa da Democracia surge na década de 80. Há uma preocupação deles em manter o respeito aos militares e, de certa forma, eles não serem julgados e manter a narrativa sobre 64. Só que, com o tempo, eles vão envelhecendo e vão morrendo. Não há oxigenação. 

Nós temos em Fortaleza o Guararapes. Em Minas, o Inconfidência. Outros grupos têm participantes dos órgãos de inteligência também. Fizeram curso de comunicação na Escola Superior de Guerra, na Escola da Inteligência. Então, eles têm um vocabulário em comum. Esse vocabulário em comum que acho importante, porque embora eles diminuam de tamanho com o tempo pela falta de oxigenação, o discurso se manteve. Quando a gente pega o relatório da inteligência de 1987, dizia que o Congresso brasileiro tinha 30% de esquerdistas e isso era uma ameaça.

"Os movimentos da mulher, o movimento negro, são vistos como espécie de gramscismo, ou marxismo cultural. Olavo de Carvalho apenas repetiu essas bobagens e não foi nada inédito"

Os movimentos da mulher, o movimento negro, são vistos como uma espécie de gramscismo, ou marxismo cultural. Quando a gente vê Olavo de Carvalho repetindo essas bobagens, ele não está sendo em nada inédito. Por sua vez, eles estão lendo a nova nova direita dos anos 60 nos Estados Unidos. E também a extrema direita americana nos 80, a questão das universidades serem antros de drogas e tal. Isso é uma leitura que eles fazem, não têm criatividade. 

Headline– Quantos desses grupos existem hoje? E o que dizem essas cartas, manifestos, jornais?

Eduardo Heleno — Desses grupos, dois continuam existindo. Um é o Inconfidência, criado em 1992 em Belo Horizonte pelo coronel Miguez (hoje o grupo é comandado por outro coronel, Reynaldo de Biasi). Eles tinham um site, agora só tem o Facebook. Existe uma lógica: eles tensionam, depois recuam. Então, pedem a quebra do Estado democrático de direito, tem que acabar com o Congresso. Daqui a pouco, recua. Isso não é muito diferente do que o Bolsonaro faz: ele tensiona, vê os efeitos e recua.

O grupo Inconfidência ainda mantém os manifestos. Tinha um jornalzinho que era fácil de encontrar nos comandos militares, ele fazia cerimônias alusivas aos golpe de 1964. E tem um outro chamado "Terrorismo Nunca Mais", cuja sede era no Clube Militar e tem uma sede em Brasília. A história do "Terrorismo Nunca Mais" é a seguinte: a partir de 1995, alguns oficiais impactados com a política de direito e memória do governo Fernando Henrique Cardoso passam a escrever, como uma espécie de réplica, a expressão "Terrorismo Nunca Mais" em suas cartas. Havia já um grupo chamado "Tortura Nunca Mais”, cuja história e cujo valor social são enormes, por trazer as dores de quem sofreu o terrorismo de Estado. Então, eles fazem esses joguetes. A partir de 98, eles criam o grupo "Terrorismo Nunca Mais", que conversa com todos os demais grupos.

"Esses grupos sinalizam militares insatisfeitos com a democracia, com o status quo das Forças Armadas"

Headline – Esses grupos têm ramificações e ligações diretas com os clubes militares e os comandos?

Eduardo Heleno – Sim, muitos deles tinham ligação direta com o grupo Guararapes. Em todo esse panorama de redemocratização, esses grupos sinalizam militares insatisfeitos com a democracia, com o status quo das Forças Armadas. E dentro da instituição militar, agora falando da parte ativa, existe uma educação voltada a colocar como cânones da honra os valores de 64. Quando conversa com o oficial, ele pode não saber o que foi a guerra civil de 1932 em São Paulo, mas vai saber o que foi 64. Ele pode ter uma noção da Primeira ou Segunda Guerra, mas vai saber mais daquilo que está acontecendo de 63 para 64. Existe uma memória institucional feita por uma geração que viveu 64. E aí tem uma questão do personalismo.

O Exército deixa de ser o Exército do século 19 e no século 20 passa a ser o Exército utilizado para barrar um suposto avanço comunista em 64. O próprio ministro do Exército, na época do Fernando Henrique, o general Zenildo Zoroastro Gonzaga de Lucena, vai mandar uma carta para um desses grupos, que é o grupo Estácio de Sá. O grupo Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, tinha como líder um dos coronéis dos inquéritos policiais militares, o coronel Hélio Ibiapina.

O coronel Hélio Ibiapina cria o grupo, na verdade, porque ele participava dos outros grupos, mas ele criou esse grupo para vencer as eleições do Clube Militar. Vencendo,  passa a ter uma cartilha ideológica, que é valorizar 64. E recebe uma carta do ministro falando "olha, damos apoio a essa valorização". Isso a gente está no meio do governo Fernando Henrique. E deu mais motivo para que outros grupos tivessem um discurso mais afinado.

O então deputado Bolsonaro, que discursava no plenário, não falava da ditadura até 1995. O discurso do Bolsonaro no plenário era sobre salário. Mas a partir de 95, quando começa essa reação da reserva, ele adota esse discurso também de defesa de 64. Nesse sentido, está a importância desses grupos em manter o discurso que vai ser utilizado por outras gerações de oficiais. Um discurso que tem um valor ideológico enorme para eles, mas cuja significância para um Brasil do século 21 é anacrônica, mas que alimentou a direita.

"Existe sensação de superioridade no Exército, que vem de ressentimento no século 19, quando a principal força armada era a Marinha"

Headline – Um discurso que também vai alimentar esses grupos de extrema direita que vão olhar para os militares como "os bons contra os maus", e colocam os civis como incapazes de governar o país?

Eduardo Heleno – Existe uma sensação de superioridade, que teve vários momentos e vem, por incrível que pareça, de uma sensação de ressentimento no século XIX, quando a principal força armada do Brasil não era o Exército, mas a Marinha. A Marinha era a base do Império, o Império marítimo.

O Exército disputava os poucos recrutas que podiam com uma nova instituição chamada Guarda Nacional, criada em 1831. Você passa 30 anos praticamente com um Exército pequeno, com poucos recursos. E dentro desse Exército pequeno tem uma revista chamada "Tribuna" e outra chamada "O Soldado" que vão questionar a falta de incentivo do governo. Eles estão vendo a guerra na Europa, a guerra de Secessão, vão para a guerra do Paraguai, acaba a guerra do Paraguai, e esse Exército é diminuído. E quando a guerra é vencida e esse Exército volta a ser diminuído, os oficiais passam a ter noção de que estão vivendo uma sociedade escravagista. E, veja, existe um erro de generalização. O Exército do século XIX é totalmente diferente do século 20. Os oficiais que vão dar o golpe, em 1889, se juntam com uma força civil abolicionista, uma força civil republicana. A guerra do Paraguai termina em 1870. Em 1870 tem a Vitória da Alemanha sobre a França, retornando à república. Então, no espaço de 20 anos, essas forças vão levar ao fim da monarquia.

Quando nós temos esses movimentos civis, republicanismo e abolicionismo, se juntando com os oficiais, temos – junto com ressentimentos oficiais da política imperial em relação ao Exército – o caldo que vai nos levar à República. Mas é um fator que ajuda a criar no Exército não apenas uma resposta ao Império com a nova ordem, mas um sentimento de superioridade. Esse sentimento de superioridade vem da sensação de inferioridade na época do Império. 

Quando o Brasil ajuda as tropas aliadas a vencer os nazistas e fascistas com atuação importante na Itália, uma parte da oficialidade se coloca contra o governo Vargas. Não havia sentido lutar contra o fascismo com a ditadura de Getúlio Vargas aqui. Aí temos um golpe, que inaugura a chamada República de 46. A partir de 1946 temos um novo arranjo. E nesse novo arranjo, a sociedade brasileira vai emprestar aos militares uma espécie de status de árbitro político. Ou, retomando uma expressão que era do Império e que vai ser reescrita pelo Aristides Junqueira, de poder moderador.

Headline – Voltando aos grupos, aos jornais e publicações dos últimos anos. Desde o início do governo Bolsonaro, quem são os principais articuladores? Entre eles, há generais influentes, como Heleno ou Villas-Bôas?

Eduardo Heleno – Não. O que acontece é que esses grupos de outrora, a maior parte deles, deixou de funcionar já em 2010, 2014. O que temos são outras formas de ação política. Então, por exemplo, o próprio Villas Bôas criou um Instituto Villas Bôas.

O general Etchegoyen [Sérgio Etchegoyen, general de reserva e ex-ministro-chefe da Secretaria de Segurança Institucional do governo Temer] faz parte de um instituto que quer pensar as questões do Brasil. A ideia dos grupos de pressão que foram vistos até 2014-2016 são modificadas por institutos que são think tanks, que têm um enraizamento e um diálogo maior. E são feitos por generais que não são tão anticomunistas, mas não deixam de ser anticomunistas. Não são tão radicais e fazem parte de uma outra geração. Na verdade, mudou-se o conceito de ação política, muito devido à geração. E aí tem um aspecto importante.

Quando a gente fala de Bolsonaro, a gente está falando da geração de 69 a 79 da academia militar. Os grupos que foram pesquisados falavam de uma geração anterior. Então, nós temos um outro recorte. Bolsonaro não participou do combate à luta armada, era jovem. Mas os outros que faziam esses grupos participaram.

Sobre os generais que tiveram mais influência nesses grupos de pressão pesquisados, destaco o general Francisco Batista Torres de Melo. Por exemplo, na década de 90, quando ele criou o grupo Guararapes, ele mandava cartas dizendo da possibilidade de fechamento do Congresso, principalmente depois do impeachment. O governo Itamar Franco, que é um governo interino, vai convocá-lo para fazer parte da CPI que investiga os casos de corrupção no governo Collor. Olha a influência que tem esse general da reserva. O general Ibiapina [Hélio Ibiapina] vai estar no Clube Militar dois anos depois reescrevendo sobre 64 .

Alguns vão lançar carreira como deputado. Só que naquele momento da década de 90, a sociedade brasileira, majoritariamente, só pensava em redemocratizar e recuperar a economia. Mas as gerações vão se esquecendo. E aí, a gente tem 10 a 20 anos depois um esquecimento sobre os problemas que toda a ditadura comporta. E saudosos de uma ditadura que nunca viveram, ou o que é pior: de uma monarquia que foi escravocrata, atrasada. 

As pessoas sentem saudade disso. Isso é o que a gente chama de reacionarismo: pensar numa idade do ouro nunca vivida. Temos esses oficiais influentes que foram passando a bola desse discurso. E hoje a gente tem uma miríade de grupos de ação política, seja civil, seja militar, que vão se distinguindo. Tem as revistas, por exemplo, DefesaNet, Sociedade Militar, que cumprem um outro rol, porque são de gerações diferentes. Mas o que é importante desses grupos é que eles mantiveram, já no governo Lula e Dilma, a prédica anticomunista.

Assista a entrevista completa aqui.

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