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Desdolarizar o mundo: o jogo geopolítico por trás das ações de Brasil e China

Deborah Berlinck, da Headline | Genebra

A criação de uma moeda dos Brics e a internacionalização da moeda chinesa vão além de questões econômicas e refletem a disputa de poder político internacional

15 de abr. de 2312 min de leitura
15 de abr. de 2312 min de leitura

Moeda é poder. Não por acaso, a libra esterlina reinou na época em que o Império Britânico dominava o mundo e foi desbancada pelo dólar quando os Estados Unidos assumiram o comando político, militar e econômico mundial no século 20. Mas agora o jogo está mudando com a ascensão da China. 

Em visita a Pequim, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva questionou a dominância do dólar e defendeu a criação de uma moeda dos Brics, o grupo que reúne China, Rússia, Índia, Brasil e África do Sul. “Quem é que decidiu que era o dólar?”, perguntou. 

Soou como música nos ouvidos dos dirigentes chineses. Por trás da retórica do Brasil, um jogo geopolítico bem maior, com consequências econômicas importantes, está se desenhando: a desdolarização do mundo orquestrada, em conjunto, pela China e pela Rússia. 

Xi Jinping e o líder russo Vladimir Putin, sobretudo, transformaram isso numa política de Estado. O governo chinês está pressionando parceiros comerciais para que uma parte do comércio bilateral seja feita na moeda chinesa – o renminbi (RMB) ou yuan.  

Há vários movimentos na China no sentido de internacionalizar o renminbi e romper com a dominância do dólar. O banco central da China criou uma moeda digital que está sendo testada em transações de varejo no país e no comércio com Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes Unidos. 

A China também está buscando influenciar a infraestrutura de pagamentos globais centrada no dólar, segundo um relatório do Congresso americano. Em janeiro de 2021, o banco central da China anunciou uma joint venture com o SWIFT, o sistema de mensagens sediado na Bélgica que permite que bancos do mundo inteiro se comuniquem para facilitar transações e pagamentos financeiros internacionais. Pelo acordo, uma rede na China se conecta à rede SWIFT principal – o que permite ao governo chinês monitorar e controlar os pagamentos internacionais.

“Quando você analisa os documentos emitidos pelo banco central chinês, é explícito: existe uma política deliberada de internacionalização do renminbi. E isso é um jogo de soma zero. É impossível internacionalizar uma moeda sem ocupar o espaço da outra”, diz o economista Maurício Metri, professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (Irid) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

E ter o Brasil, integrantes dos Brics e outros países do sul ao lado da China reforça a estratégia da potência asiática.

Desbancar o dólar, por quê e para quê?

Várias motivações unem China, Rússia, Brasil e outros países no esforço de desbancar o dólar. A da Rússia é clara: contornar as sanções internacionais lideradas, sobretudo, pelos EUA, contra suas exportações de petróleo e gás  – principal fonte de divisa do país. A Rússia é alvo de sanções desde que invadiu a Ucrânia, em 2014.    

E para isso os russos contam com a ajuda preciosa da nova potência – a China, que segue expandindo sua influência no mundo. Como salienta o economista Bruno de Conti, professor da Unicamp, a força das sanções contra a Rússia trouxe novamente à tona o debate sobre o uso do dólar como arma – ou seja, o poder dos EUA de aplicar sanções de forma indiscriminada. E isso preocupa a China. 

Em março, na visita do líder chinês a Moscou, os dois países se comprometeram a intensificar as trocas comerciais em moeda local. Segundo o FMI, a Rússia detinha no final de 2021 quase um terço de suas reservas em renminbi chinês. Nas contas do Kremlin, o renminbi e o rublo já representam dois terços dos pagamentos de transações comerciais entre os dois países. Com isso, Putin contorna as sanções. E a China avança na internacionalização de sua moeda. 

Um mundo dominado pelo dólar também dá um enorme poder para o único país que emite a moeda – os EUA – expandir seus gastos, financiado por outros países. Como?

Para garantir a inserção no sistema internacional e a estabilidade de suas economias, bancos centrais de países no mundo inteiro acumulam reservas em moeda estrangeira. Grande parte destas reservas, hoje, são em dólar, ou melhor, em títulos da dívida pública americana.  

Isso tem implicações geopolíticas que vão além da economia, explica Metri. Ele vê uma clara ligação entre o atual sistema financeiro e monetário internacional e disputas geopolíticas. Desde 91, segundo o economista, os EUA sustentam sua presença militar no mundo, suas alianças e intervenções militares graças à dominância do dólar e sua capacidade de expandir gastos.

Pelos cânones da macroeconomia, diz Metri, qualquer outro país com o grau de endividamento e déficit dos americanos já teria quebrado. Mas no caso dos EUA, o fato de o mundo financiar seu déficit e seus gastos “é sinal de força”. 

China e Rússia sabem disso. Mas se Putin – em guerra fria contra os EUA – não se importaria em ver o dólar e a economia americana afundarem, este não é o caso da China. 

“Tem uma sinergia entre China e EUA em que crise nos Estados Unidos é também uma crise global que atinge a China. Uma crise do dólar atinge frontalmente a China, que tem US$ 3 trilhões em reservas cambiais. Nem a China deseja uma crise do dólar”, pondera o economista Bruno de Conti, professor da Unicamp. 

As motivações do Brasil

Há outras motivações no caso do Brasil e outros países do sul. Uma delas é que desde que o dólar foi designado como moeda dominante pela conferência de Bretton Woods, em 1944, quando a Segunda Guerra se aproximava do fim, todas as transações do mundo passaram a ser feitas na moeda americana. Assim, países ficaram expostos aos efeitos da política econômica e monetária dos EUA. 

Isso é contornável quando as economias estão com seus fundamentos em ordem. Mas, por exemplo, no caso da Argentina, que hoje está altamente endividada em dólar,  o aumento das taxas de juros nos EUA têm um impacto desastroso: o país tem poucas reservas em dólar para pagar essa dívida e, por estar endividada, não consegue crédito no mercado internacional. O país está taxado de mal pagador. A crise argentina chegou a tal ponto que há 15 versões de dólar no país, que vão do oficial ao “dólar Coldplay” e “dólar Qatar”. 

Outra motivação é escapar da série de exigências – as chamadas “condicionalidades” – dos empréstimos e ajudas do Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), duas instituições sob forte influência dos EUA e do dólar, que foram criadas para garantir a estabilidade financeira e monetária no mundo pós-guerra. 

“No caso do sul global, um dos objetivos fundamentais (da desdolarização) e que apareceu claramente no discurso do presidente Lula e também da presidenta Dilma, é acabar com o 'complexo de Messias' do FMI e do Banco Mundial, que criam condicionalidades”, diz o economista Maurício Metri.

Países endividados que não seguem as exigências desses órgãos não conseguem crédito. É o que o que Metri chama de "estrangulamento externo”: "É importante entender que a definição destas condicionalidades é política. Washington, sobretudo, define a atuação do Banco Mundial e do FMI por diversos mecanismos, de acordo com seus interesses estratégicos. Nesse sentido, são instituições que operam de um modo que convém ao Atlântico Norte, à revelia dos países da periferia. E que se transformam em instrumento de estrangulamento dos países que têm uma tendência ao endividamento em moeda estrangeira”. 

Dilma no comando do banco dos Brics

Lula e Dilma Roussef na posse da ex-presidente no banco dos Brics
O presidente Lula com Dilma Roussef em sua posse como presidente do banco dos Brics. Foto: Ricardo Stucker/ Presidência da República

O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), conhecido como o banco dos Brics, lançado em 2015, foi um movimento nesta direção: criar uma alternativa às amarras e às fontes tradicionais de empréstimos, essencialmente, Banco Mundial e FMI e os EUA com a dominância do dólar. O banco teve mais de US $30 bilhões em empréstimos aprovados até 2021. A ex-presidente Dilma Rousseff assumiu agora a presidência. 

Mas como explica Bruno de Conti, para além de interesses estratégicos mais amplos que motivam países a quererem se livrar do poder do dólar e dos EUA, questões econômicas mais imediatas vão impulsionar os Brics a avançar. E a mais imediata é: fechar transações comerciais em moeda local sai mais barato. 

Nas importações e exportações do Brasil, o dólar serve, na realidade, como um veículo: os exportadores, muitas vezes, vão receber em real, mas essa transação é feita em dólar. E é no câmbio do dólar para o real e vice-versa que a transação encarece. “É fácil de entender: quando a gente viaja para o exterior, compra dólar por uma taxa. Mas se sobrar dólar, a gente vai vender por uma taxa muito mais baixa”, explica Bruno de Conti.

Na viagem de Lula à China, a ideia, portanto, é mudar isso. Neste sentido, dois acordos importantes foram firmados entre China e Brasil, antes da viagem de Lula. Um abre a possibilidade, a partir de julho, para que o comércio bilateral se faça nas moedas locais. 

Mas Bruno de Conti frisa: é apenas uma possibilidade. “Muitas empresas chinesas e brasileiras certamente preferirão continuar as transações em dólar, que é a moeda-chave do globo”. Ele cita como exemplo o caso de um acordo de 2009 entre Brasil e Argentina para fazer trocas comerciais em moeda local. “Isso não deslanchou porque os argentinos não querem receber em pesos. Preferem receber em dólar, por motivos óbvios”. 

Para facilitar o comércio entre China e Brasil na moeda local, o segundo acordo foi a criação no Brasil de um centro offshore operacionalizado pelo maior banco chinês – o Banco Industrial e Comercial da China (ICBC, na sigla em inglês)  – para possibilitar as operações cambiais na moeda chinesa. A China já tem 27 centros como este instalados em vários países no mundo.

Fim da dominância do dólar?

A China já é a maior economia do mundo em Paridade de Poder de Compra (PPC) – medida utilizada para comparar várias economias. E sua economia é 20% maior do que a economia dos EUA, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). 

O FMI também apontou no ano passado para uma mudança na composição das reservas cambiais dos países. O fundo diz que, embora a presença do dólar no comércio mundial, na dívida internacional e nos empréstimos não bancários ainda seja grande, “os bancos centrais já não mantêm a mesma quantidade de reservas nessa moeda como costumavam fazer”: a participação do dólar nas reservas cambiais mundiais caiu abaixo de 59% no último trimestre de 2021. 

Fim do reinado do dólar? Ainda não, diz Bruno de Conti. 

“Quando a gente olha a história, a transição da libra para o dólar levou meio século mais ou menos”. 

Ele aponta três razões principais para isso. Um é o poder da chamada economia de rede. Isto é: toda a riqueza mundial, os contratos, estão denominados em dólares. “O exportador brasileiro não vai sozinho falar: ‘Bom, agora eu achei legal guardar renminbi’. Ele vai fazer isso se outras pessoas começarem a fazer”, explica o economista da Unicamp. 

A segunda razão é que a força do dólar também está assentada na força do sistema financeiro dos EUA. “O mercado de capitais estadunidense é, muito de longe, o mais importante do mundo”. Para rivalizar com os EUA, a China teria que abrir o seu mercado de capitais, facilitar os investimentos em renminbi e flexibilizar o câmbio. Mas pelo projeto de desenvolvimento do país, a China não conseguiria construir isso com rapidez. 

Em terceiro lugar, a riqueza do mundo está assentada não propriamente no dólar, mas nos títulos da dívida pública dos EUA. “Quando a gente fala em reservas em dólares, não é que seja dólar cash guardado no cofre dos bancos centrais. São títulos públicos estadunidenses, porque rendem alguma coisa”, explica Bruno de Conti.

E o estoque de títulos públicos chineses é bastante inferior ao dos americanos, embora uma lenta transformação esteja, de fato, acontecendo. Há 3 anos, 4% do mercado cambial global usava o renminbi. Agora são 7%.  

As reservas dos países – que garantem a estabilidade de suas economias – são formadas com uma cesta com várias moedas. E, no caso da China, uma parte significativa destas reservas – estima-se 60% – são em dólares. A China tem a maior reserva em moeda do mundo: o equivalente a US$ 3,128 trilhões em dezembro de 2022.   

Além disso, a internacionalização da moeda chinesa enfrenta obstáculos na própria China. Os chineses não permitem que sua moeda seja negociada livremente nos mercados de câmbio – o que limita o uso do renminbi em transações internacionais. 

Finalmente, a força de uma moeda está também na confiança que as pessoas depositam nela e nos governos que asseguram o seu valor. Isso explica porque argentinos fazem suas economias em dólar e não em pesos.

Preparem-se para a reação dos EUA

Maurício Metri está convencido que apesar de o dólar ainda ser disparado a moeda mais importante do sistema internacional, “os pilares de sua sustentação estão sendo duramente atingidos”. 

Os Brics, neste sentido, representam uma ameaça, segundo o economista. Porque ao criarem uma estrutura para conceder empréstimos aos países do sul, a instituição esvazia a capacidade e o poder do FMI e do Banco Mundial – instituições dominadas pelos EUA – de “enquadrar” com suas exigências as economias do sul. 

“Do meu ponto de vista, os Estados Unidos não vão ser indiferentes a isso”, avisa o economista da UFRJ.  

E a reação, diz, pode ser violenta, como o aumento brutal dos juros americanos com o choque do petróleo em 1979 – o que levou Brasil, México, Argentina e Equador a quebrarem e – num efeito dominó – darem o calote da dívida externa, numa crise que se arrastou até o ano 2000. Na visão de Metri e de economistas como Maria da Conceição Tavares, o aumento dos juros foi uma reação dos EUA aos ataques ao dólar. 

“Isso é um jogo político. A hierarquia monetária internacional decorre, fundamentalmente, das feições da configuração geopolítica maior. Se o mundo seguir uma lógica de rivalidades, de fragmentação, de blocos por conta das disputas geopolíticas, isso vai refletir nos pontos de vista econômico e monetário”, avalia Metri. 

Um debate que não deixa ninguém indiferente. Bruno de Conti diz que tem muitos indícios de que desbancar o dólar “em algum momento, pode acontecer”. Mas ele está convencido que a mudança não é para agora. E conclui: “Ao fim do cabo, o que a gente está discutindo é se vai haver uma transição hegemônica. Pode ser que aconteça. Pode ser que no meio do caminho tenha até uma guerra, cujo desfecho a gente não sabe. O que posso dizer, sim, é que pelo menos num futuro próximo, não vai haver nenhuma transição”. 

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