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Depois de anos de crise, cinema brasileiro vive momento de reconstrução

Estreias nacionais, como Rio do Desejo, e decreto presidencial marcam momento de retomada da produção audiovisual no país. Ancine sobreviveu melhor do que outras instituições culturais

Gaía Passarelli, de Headline | São Paulo
#ARTE26 de mar. de 237 min de leitura
Milton Hatoum, Sophie Charlotte e Daniel de Oliveira na pré-estreia de “Rio do Desejo”, no Teatro Amazonas, em Manaus. Foto: Alex Pazuello/divulgação.
Gaía Passarelli, de Headline | São Paulo26 de mar. de 237 min de leitura

"A primeira grande pré-estreia do filme foi em Manaus. E foi incrível, as pessoas vibravam, gritavam, comentavam. Quando aparecia um peixe, uma gíria local, as coisas da região, a plateia fazia barulho, aplaudia, ria. Essa experiência coletiva é uma coisa que a gente não pode abrir mão."

A fala é do diretor baiano Sergio Machado, que está percorrendo o país para lançar "Rio do Desejo", longa-metragem estrelado por Sophie Charlotte e Daniel de Oliveira, rodado no Amazonas e presente nas salas de cinema desde quinta-feira.

O cineasta, premiado na estreia no circuito comercial de cinema com "Cidade Baixa" em 2005, vê como sua "missão" levar o filme às salas de cinema. "Acho que o cinema que eu faço tem como público-alvo as pessoas retratadas nele. Por isso, estou tentando fazer essas pré-estreias grandes, como as do passado, em que ficava gente sentada no chão para assistir, os filmes geravam debates. É uma coisa que a gente tem que lutar para manter, ainda mais após esses quatro anos de ataque a cultura e perseguição aos artistas."

Roteirizado em parceria com o escritor amazonense Milton Hatoum e elogiado no circuito de festivais internacionais antes da estreia, "Rio do Desejo" conta a história de três homens apaixonados por uma mesma mulher em uma pequena comunidade (real) no Amazonas. 

Essa valorização do cenário e do comportamento brasileiro, que o público reconhece na sala de cinema, e que passa longe de uma tropicalização "para inglês ver", faz parte de um ciclo de filmes atuais em que cabe tanto "Medida Provisória" (2022) quando os recentes "Medusa" e "Mato Seco em Chamas". É um cinema feito no Brasil, muitas vezes por fora do eixo Rio-São Paulo, que toca em questões centrais do período bolsonarista. 

"Meu filme fala muito da repressão do desejo e da perversão que vem disso", conta Sergio. "A gente vem de um período dominado por gente perversa, reprimida e repressora. E eles estão aí, fortíssimos, e acho que a nós cabe fazer com que voltem para o esgoto da história, de onde nunca deveriam ter saído. A gente não pode baixar a guarda, e o cinema tem um papel fundamental nisso."

As pré-estreias de "Rio do Desejo", com salas lotadas também em São Paulo e no Rio de Janeiro, é sinal auspicioso da reconstrução do audiovisual brasileiro, cujo sintoma maior é a recriação do Ministério da Cultura com orçamento bilionário. E se junta ao novo decreto do MinC, anunciado nessa quinta-feira no Rio de Janeiro, que retoma políticas públicas de incentivo a cultura em todas as regiões do país, com a atualização e simplificação de ações de fomento indireto, como a Lei Rouanet, e suportes culturais diretos, como as leis Paulo Gustavo, Aldir Blanc e Cultura Viva.

A volta do fomento é faísca de uma nova "retomada" do cinema brasileiro? Machado acha possível. "Sinto que existe esse desejo de retomada, sim. E a gente vem com tudo agora, com o lançamento do fomento do MinC de apoio ao audiovisual", entende. "Eu tô muito entusiasmado, a gente tá vindo de um momento terrível, mas sinto que os próximos anos de cinema têm tudo para ser muito interessantes."

Sergio Machado na pré-estreia em Salvador.
Sergio Machado na pré-estreia em Salvador. Foto: Milena Palladino/divulgação.

O cinema que não se vê

"Eu acho que o governo vai usar o termo retomada, mas eu penso mais em termos de reconstrução", afirma Ana Paula Sousa, professora e pesquisadora de políticas culturais e regulação do mercado de audiovisual brasileiro, que desde 2001 escreve sobre o assunto na imprensa brasileira

Ela acaba de lançar "O cinema que não se vê: A guerra política por trás da produção de filmes brasileiros no século XXI", pela editora Fino Traço, em que registra bastidores e dilemas da política do audiovisual no Brasil a partir de entrevistas e apurações conduzidas desde sua primeira reportagem, sobre a criação da Ancine, em 2001.

"Mas é fato que o audiovisual brasileiro nunca parou", pontua Ana. Quando a gente falou de retomada, em 1995, o cinema brasileiro estava no chão. Entre 1991 e 1992 foram lançados, respectivamente, um e dois filmes brasileiros. Não tinha produção. Isso não aconteceu entre 2019 e 2022. A gente viveu uma crise, o setor passou por um momento muito difícil, mas não parou."

Para a pesquisadora, a crise entre governo e cultura dos últimos anos refletiu políticas mais amplas do país. "O que houve no governo Bolsonaro é que pela primeira vez, desde a criação da Ancine, o poder público deixou de considerar legítima a sua relação com a cultura."

Porém, em simultâneo, a Ancine tinha solidez, sendo protegida pelo fato de ser uma agência reguladora. "A Ancine sobreviveu ao bolsonarismo mais do que outras instituições culturais. Ela não passou pelo mesmo da Fundação Palmares ou da Funarte. O Bolsonaro não conseguiu colocar gestores delirantes no comando da agência. Os três diretores da Ancine tiveram que ser sabatinados pelo Senado. E por isso, os nomeados foram funcionários de carreira da agência. Isso fez toda a diferença, mesmo que Bolsonaro tenha dito literalmente, em uma live em 2019, que 'ia extinguir a Ancine'."

A Ministra da Cultura Margareth Menezes no evento do Minc no Rio.
A Ministra da Cultura Margareth Menezes no evento do Minc no Rio. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil.

Avisa lá que a cultura voltou

A retomada, ou reconstrução, ganhou força no evento dessa quinta-feira, no Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, com a presença da ministra Margareth Menezes e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pegou o microfone para avisar que "a cultura brasileira está viva".  

Ana Paula Sousa vê com otimismo os pontos anunciados na solenidade. "O decreto do fomento tem duas coisas importantes. Primeiro, um reordenamento legal da cultura, que passa pela revogação do decreto assinado pelo Bolsonaro em 2021, que, na prática, inviabilizava a continuidade do fomento." Para a pesquisadora, esse valor legal é importante porque retoma princípios e resolve confusões, como o teto de cachês de R$ 3 mil, e determinações que atrapalhavam o funcionamento de institutos importantes como Inhotim e as organizações sociais responsáveis pelos equipamentos culturais de São Paulo. "Além disso, o evento é simbolicamente importante, com o presidente e a ministra pondo fim a guerra do governo contra o setor cultural".

O texto do decreto estabelece e atualiza regras e procedimentos para as leis de fomento cultural direto e indireto, definindo objetivos e beneficiários de políticas públicas culturais, visando "enxergar a cultura em toda a sua especificidade e diversidade, reconhecendo as necessidades de realizadores e suas dinâmicas de produção em diferentes segmentos artísticos, e simplificando procedimentos para ampliar o acesso aos bens culturais pela sociedade”, em definição da ministra Margareth Menezes.

Em sua fala na cerimônia, a ministra exaltou o papel dos funcionários públicos do setor. "Nós pegamos os programas de fomento destruídos. O Vale Cultura, o Cultura Viva, a Lei Rouanet, tudo estava abandonado e apequenado", conta. "E foi graças aos nossos servidores e servidoras, que resistiram nesses últimos anos, e graças à equipe experiente que trouxemos, que reconstruímos e reestruturamos o trabalho de gerações de gestores que já passaram pelo MinC, recolocando de pé mecanismos centrais para a cultura brasileira."

Ana Paula diz que faz uma leitura "apaziguadora" do decreto. "Vamos voltar a acreditar que os produtores culturais não são inimigos do país, que artistas não são ladrões, que patrocinadores não são exploradores. Vamos voltar a ver a cultura como trabalho e deixar as pessoas trabalharem. "

Já Sergio Machado, que faltou a cerimônia do MinC para estar na pré-estreia de seu "Rio do Desejo" em Salvador, também celebra: "Sinto uma obrigação cívica de fazer com que os filmes atinjam público e as pessoas voltem a ir ao cinema, porque isso é mostrar que a cultura está viva, que o Brasil está vivo, que os artistas brasileiros estão vivos".

A semana também foi marcada pelo anúncio do novo comitê gestor do Cais do Valongo, com presença da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e do novo presidente da Fundação Palmares, João Jorge Rodrigues, e pela visita de Lula ao canteiro de obras do Museu Racional, com reabertura prevista para 2026.

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