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Análise sob demanda: o que explica o sucesso dos podcasts de psicanálise?

Gaía Passarelli, da Headline | São Paulo

Enquanto ansiedade, burnout e depressão aumentam, podcasts de psicanalistas ajudam as pessoas a elaborar a realidade no conforto do fone de ouvido

12 de abr. de 239 min de leitura
12 de abr. de 239 min de leitura

No final de 2022, o ranking anual de podcasts mais ouvidos do Brasil no Spotify trouxe no top cinco o Psicologia na Prática, da psicóloga Alana Anjar. Com episódios semanais de cerca de vinte minutos, o programa aborda temas como timidez, ansiedade e desenvolvimento de consciência emocional, sempre em linguagem leiga. Ainda que o formato destoe do padrão mais comum na podosfera brasileira, que é mesa de conversa, entrevista ou notícias, o Psicologia na Prática não está sozinho numa temática que interessa cada vez mais ao ouvinte médio: saúde mental.

"Acho que são sinais de uma busca por repertório para lidar com a ansiedade e outros sentimentos tão presentes nos nossos tempos", diz Magê Flores, editora da área de podcasts da Folha de São Paulo, responsável por dois dos podcasts mais ouvidos na lista do Spotify: "A Casa Abandonada", do repórter e escritor Chico Felitti, e Café da Manhã, programa diário de notícias.

Outro podcast estrela da Folha, o "Meu Inconsciente Coletivo", no ar desde 2021, da escritora e estudiosa de psicanálise Tati Bernardi, tem a saúde mental como temática. "É um podcast crônica, com a saúde mental como assunto. Há um cuidado em deixar claro que tudo ali trata dela, mas os relatos podem gerar alguma identificação", explica Magê. Para ela, "o interesse por psicanálise, combinado à curiosidade em relação a relatos e à conveniência do áudio, explicam o engajamento do público".

Esse interesse encontra eco na percepção de André Alves, psicanalista, escritor e pesquisador da consultoria comportamental float: "Tanto o sofrimento psíquico quanto o cuidado com o psiquismo estão mais presentes nos últimos anos. A gente tá vendo um acúmulo de sofrimento muito grande, com o crescimento de relatos de ansiedade, depressão, burnout e quadros severos de transbordamentos. Tem algo que está difícil das pessoas processarem".

Outro lado dessa moeda, acredita André, que apresenta o podcast semanal Vibes em Análise, é uma mudança no repertório da própria audiência. "A gente também vê a cultura trocando os códigos, parando de falar em autoajuda e falando em autocuidado, parando de falar de estresse e falando de saúde mental. E, com isso, vemos termos como trauma ou recalque, da gramática analítica, sendo incorporados ao vocabulário das redes." 

O também psicanalista Guilherme Facci, com mais de dez anos de clínica em consultório, destaca o interesse de audiência. Foi após participar como convidado do podcast "É Noia Minha?", da amiga Camila Fremder, em 2019, que Facci começou a receber mensagens com perguntas que o motivou a criar seu próprio programa, "A Loucura Nossa de Cada Dia" — hoje com cerca de 25 episódios, sem periodicidade definida, impulsionamento ou monetização, e com mais de um milhão de plays. 

"Eu criei o podcast para transmitir a psicanálise de maneira acessível e rigorosa, sem perder o rigor metodológico de vista. Acho que o formato podcast, dentro da transmissão da psicanálise que eu proponho, funciona porque privilegia o discurso, a voz e a palavra, que é a matéria prima com que a gente trabalha. E esvazia uma questão, que eu acho que está inflacionada, que é imagem", destaca Guilherme, que não faz versão em vídeo do podcast.

Novas mídias nem tão novas

Para Fabiane Secches, psicanalista e pesquisadora na Universidade de São Paulo e professora no Centro de Estudos Psicanalíticos, a presença da psicanálise nas novas mídias, que incluem as redes sociais, é delicada, mas pode ser importante para tirar psicanálise de um lugar elitista e excludente.

"A psicanálise não deveria se tornar um tabu nem exclusividade de um grupo restrito de pessoas iniciadas. A psicanálise é uma ciência viva que se favorece da intersecção com outros campos da arte e do saber, e precisa estar sempre em discussão, já que nossas subjetividades são profundamente afetadas pela cultura, e a cultura está em constante transformação." 

Fabiane, que também coordena um clube do livro de literatura e psicanálise — e escreve sobre literatura, cinema e psicanálise para a Folha de S. Paulo e O Globo —, crê que a seara da psicanálise como fenômeno midiático não é novidade.

"Quando a obra de Freud foi traduzida do alemão para o inglês e, em seguida, do inglês para o mundo, ela se espalhou com muito entusiasmo, foi deixando os círculos mais específicos e passou a fazer parte da cultura popular. No mundo de hoje, com o crescimento das redes sociais e outras plataformas de comunicação, é natural que um assunto que já exercia fascínio, como a psique humana, ganhe espaço", destaca.

Ela pontua ainda que existem questões éticas que permeiam a atividade independente da mídia usada: "Existe a responsabilidade de como essa abordagem será feita. O mais importante é distinguir essas experiências, como podcasts, da experiência de formação em psicanálise e da clínica psicanalítica".

Foto: George Milton/Pexels

Nesse sentido, podcasts com alcance midiático (como o Meu Inconsciente Coletivo ou o Psicologia Na Prática) ou psicanalistas célebres que não raro viralizam em recortes de canais de Youtube e se tornam memes, como Christian Dunker e Maria Homem, cumprem um papel importante de debate público sobre questões humanas. Para André, isso se dá devido ao "maior interesse em conteúdos que ajudem as pessoas a lidar com essa tarefa tão esquisita que é estar vivo". 

"A ideia de todos esses analistas um pouco mais pronunciados no debate público tem a ver com ajudar as pessoas a elaborar melhor a realidade para não serem engolidas por ela. A grande questão é será que a psicanálise pode nos ajudar a entender um pouco melhor no mundo em que a gente vive? A gente acredita que sim, que todo mundo merece um pouco de escuta".

Mas os princípios éticos, destaca, devem ser inabaláveis. "A gente precisa ser muito cuidadoso com o rigor ético da prática clínica e da psicanálise todo. O sigilo do paciente é fundamental, nem em supervisões clínicas, quando se está discutindo estudo de caso, a gente fala nome do paciente. As pessoas, quando estão em análise, estão dividindo suas esquinas mais escuras, aquelas onde em elas têm coragem de andar sozinhas."

Fora das quatro paredes

Fabiane menciona que a busca por falar de psicanálise para além da prática clínica e conectá-la a outros campos da arte e do saber é antiga e remete, por exemplo, à sua relação com a literatura:"Freud era um grande leitor de literatura. Dois dos autores mais citados em toda a sua obra, que é vastíssima, não são médicos, psicólogos, filósofos ou cientistas e pensadores de outros campos, mas sim escritores: Shakespeare e Goethe. E há a importância inquestionável dos mitos da Antiguidade Clássica para a criação de conceitos e ideias muito importantes da psicanálise, como o mito de Narciso, para ficar em apenas um exemplo." 

Já para André, a busca por personagens da ficção o leva a casos que podem ser estudados em ambiente público, estratégia também usada pelo Meu Inconsciente Coletivo em algumas temporadas: "No meu canal no Youtube, eu faço uma série onde analiso personagens ficcionais como se fossem pacientes. Acredito que essas análises da ficção ajudam a entender nossos próprios desejos e a escutar o que a gente faz ou deixa de fazer, nos tirando desse lugar de impulsos afetivos, de amar ou odiar as personagens, de se projetar completamente ou de negar completamente um personagem, criando relações objetais um pouco mais elaboradas". 

Não é de se espantar, então, que a audiência procure ali celebridades midiáticas com as quais se relacionam, como participantes de reality shows. "O que as pessoas mais me perguntam é quando vou analisar os participantes do BBB, e minha resposta sempre é: nunca. Porque essas são pessoas reais. Tudo bem que tem um recorte midiático, as pessoas estão na televisão, mas a gente tem que ser muito responsável com o que a gente fala, porque isso pode atravessá-las de alguma forma", diz André. Para ele, o analista tem uma responsabilidade, "inclusive com a renúncia". 

"O lugar do analista é o lugar do suposto saber, a gente não pode se colocar em um lugar de guru ou juiz que sabe tudo e pode falar sobre tudo ou sentenciar as pessoas a enfrentarem seus sintomas da forma mais crua. Isso exige um trabalho de acompanhamento e tempo, cada análise tem um tempo e um espaço".

Guilherme concorda que precisa de tempo antes de qualquer coisa ir para o ar: "eu faço muita pesquisa, releio artigos, leio às vezes quatro, cinco, dez livros antes de gravar um episódio. Preciso me sentir autorizado pela pesquisa clínica e teórica antes de produzir um episódio, e tudo isso toma tempo".

Ele conta também que a escolha dos temas passa pelo que deseja estudar, misturado com demandas que surgem dos ouvintes. "Porque a minha pesquisa tem que ter eco com nossas questões contemporâneas".

É a contemporaneidade, afinal, que mantém a psicanálise viva e muito atual. Freud concordaria, acredita Fabiane: "não podemos parar no tempo e tratar esses textos e temas como se fossem sagrados, intocáveis. Acredito que se Freud estivesse vivo, talvez pensasse um pouco assim, e continuaria revendo e complementando ideias e conceitos que um dia propôs, como fez ao longo de toda sua obra enquanto esteve aqui".

Cinco podcasts para acompanhar

Vibes em Análise
Psicanalise como ferramenta para navegar as loucuras da vida moderna, com os psicanalistas André Alves e Lucas Liedke.

A Loucura Nossa de Cada Dia
Conceitos psicanalíticos e angústias da vida cotidiana a partir de estudos conduzidos pelo psicanalista Guilherme Facci.

Meu Inconsciente Coletivo
A escritora Tati Bernardi conversa com alguns dos melhores psicanalistas do país sobre diferentes temas e neuroses com os quais a audiência pode se identificar.

Psicanálise de Boteco
Em "Freud explica ou Freud implica?", Alexandre Patrício busca falar de psicanálise de forma prática e longe de jargões acadêmicos.

É Nóia Minha?
A escritora Camila Fremder entrevista personalidades sobre neuroses modernas para trazer "maluquices" que passam pela cabeça de todo mundo.

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